Arquivo de dezembro de 2019

Publicado por Marçal Justen Filho em 12.12.2019 às 16:00

O nome da Rosa

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O Nome da Rosa (Umberto Eco)

Marçal Justen Filho

“In omnibus requiem quasivi, et nusquam inveni nisi in angulo cum libro” (Kempis)

(“Em todos os lugares eu procurei a paz e não a encontrei em local algum, exceto em um canto com um livro”)

O Nome da Rosa é um dos grandes livros do final do século XX, que explora questões diversas, inclusive sobre o poder como instrumento para dominação dos seres humanos.

A riqueza dessa obra deriva não (somente) do estilo, da estória ou da capacidade criativa do autor. O livro não deixa de ser uma espécie de experimento prático produzido por um teórico da linguística.

O Nome da Rosa é uma criação destinada intencionalmente a explorar as diversas dimensões da comunicação. O livro não se destina apenas a contar uma estória. É uma obra em que a estória é o pretexto para transmitir mensagens, dialogar com as personagens e com o leitor, induzir o leitor a recriar um universo perdido e a meditar sobre valores essenciais.

1) Explicar uma obra-prima?

Explicar uma obra-prima é como explicar uma anedota. Compreende-se a obra de arte, tal como a anedota, como um conjunto, uma composição indissociável. Explicá-las é destruí-las. Mas a explicação permite incorporar as virtudes na obra (não tanto da anedota) na existência cultural, numa espécie de processo autofágico.

Essa ressalva prévia é indispensável para justificar a chatice de uma crônica sobre O Nome da Rosa.

2) A farsa

Umberto Eco tratou largamente e com grande virtuosidade os padrões do romance, assumindo de modo claro a dimensão da farsa que se encontra em toda obra de arte. Há aspectos muito evidentes dessa brincadeira, que foram largamente explorados pelos críticos.

A estória é enquadrada numa grande farsa. A trama central de O Nome da Rosa transcorre durante uma semana, no final do mês de novembro do ano de 1327. A estória teria sido escrita como um manuscrito de memórias, redigido dezenas de anos depois da ocorrência dos eventos. Esse manuscrito teria ficado perdido durante séculos e foi descoberto numa aventura muito estranha e mal contada pelo narrador. Por razões pouco explicadas, o manuscrito é novamente perdido e o “autor” reproduz o texto com base na própria memória, em anotações e em outras fontes reconhecidamente inconfiáveis.

O livro contém uma série de menções à cultura livresca, com uma grande quantidade de referências indiretas, produzidas quase como uma diversão.

O texto é escrito na primeira pessoa, em que o narrador é um noviço (chamado “Adso”), de origem germânica, que expõe fatos extraordinários ocorridos num mosteiro encravado nas montanhas do norte da Itália. Essa narrativa envolve especificamente a atuação de um monge franciscano mais idoso, oriundo da Inglaterra, chamado “Guilherme de Baskerville”. Esse contexto e a estrutura do livro remetem diretamente à personagem de Sherlock Holmes de Conan Doyle. Basta considerar o paralelo “Watson – Adso” e a referência a “Baskerville”, que envolve uma das mais famosas aventuras do grande detetive (“O cão dos Baskervilles”).

Outra questão evidente se relaciona com uma das personagens mais importante da estória. Trata-se de um monge cego, chamado Jorge, que domina uma grande biblioteca labiríntica repleta de espelhos. Há uma remessa evidente à figura de Jorge Luis Borges.

Em outra passagem, o autor lamenta a figura do Papa João XXII, qualificado como uma pessoa desprezível e um péssimo líder religioso. O texto formula o desejo de que nunca mais um Papa adotasse o nome João. A brincadeira é evidente, pois João XXIII foi uma das personalidades mais queridas e respeitadas da Igreja Católica.

O livro contém, então, essa espécie de “tesouros escondidos”, que indicam o compromisso da obra em produzir um diálogo pessoal com cada leitor.

3) A obra séria

Mas O Nome da Rosa também é uma obra de arte muito séria, que enfrenta questões fundamentais para a Humanidade, inclusive para aqueles que atuam na órbita jurídica. O livro trata de poder e controle entre os seres humanos, num universo de práticas produzidas por diversos meios instrumentais, que vão desde a Religião até o Conhecimento, passando inclusive e obviamente pela pura e simples força física.

4) Síntese da trama

A estória narrada em O Nome da Rosa relaciona-se a um encontro preparatório, ocorrido no território neutro de um Monastério e destinado a estabelecer as condições para uma reunião futura entre o Papa João XXII e um dos líderes do movimento franciscano da época (Michele de Cesena).

Guilherme de Baskerville é um dos emissários dos franciscanos e é acompanhado por um noviço beneditino (Adso). Guilherme fora um inquisidor, mas abandonou o ofício desiludido pelas práticas adotadas. Detém grandes virtudes de investigação e de raciocínio lógico. Infere-se que Guilherme dispôs-se a participar desse encontro prévio especificamente porque o Monastério escolhido mantém a maior biblioteca existente à época na Europa, com dezenas de milhares dos volumes mais raros, conservados por séculos.

Existe uma questão política subjacente. O Papa João XXII, francês de origem, dominava a Europa ocidental à época. Contra ele se levantara Ludovico da Baviera, que invadiu com suas tropas a Itália. Nessa época, o Papa João XXII já se estabelecera em Avignon, na França.

Há uma questão religiosa fundamental. Os seguidores de Francisco de Assis se opunham radicalmente aos costumes da Igreja e denunciavam as práticas generalizadas das diversas ordens religiosas. Detestavam o Papa João XXII, que reprimia violentamente as diversas “heresias”. No cenário histórico da época, havia o risco de que o Papa João XXII estabelecesse que os Franciscanos seriam também uma heresia.

Em todas essas circunstâncias, o Papa se valia não apenas dos exércitos dos monarcas aliados, mas também e especificamente da Santa Inquisição para perseguir todos os seus desafetos.

No dia em que Guilherme e Adso chegam à Abadia, ocorre a morte de um dos monges que trabalhava na biblioteca. Guilherme, por sua reputação como grande investigador, é convocado para apurar o ocorrido.

Na sequência, sucedem-se mortes de outros monges, todos relacionados de algum modo com a biblioteca. Ocorre uma morte a cada dia. Guilherme têm várias teorias, mas antes que consiga desvendar o ocorrido, chega à Abadia a missão encaminhada pelo Papa João XXII, que é comandada por um dos mais cruéis inquisidores da época (Bernardo).

Em pouco tempo, Bernardo prende um suspeito, ameaça-o de tortura, obtém uma confissão falsa e determina a pena de morte de outros inocentes. Durante o procedimento inquisitório, os Franciscanos e os partidários do Papa entram em conflito, tornando inviável a realização do futuro encontro.

No final, Guilherme e Adso descobrem o motivo real das mortes, que se reporta a Aristóteles. E também identificam o responsável pelos trágicos eventos – que se tornam ainda mais trágicos ao final.

Guilherme e Adso partem e nunca mais se encontram. No final da vida, dezenas de anos depois, Adso termina as suas memórias com as seguintes palavras:

“deixo esta escritura, não sei para quem, não sei mais sobre o quê: stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus”.

5) Por que “O Nome da Rosa”?

Não se pode afastar que o sucesso do livro de Umberto Eco tenha a ver com o seu título. Não há, ao longo da obra, referência alguma que justifique essa escolha, até a sua última passagem, acima reproduzida. O título “O Nome da Rosa” tem relação com essa passagem final do livro.

A tradução do trecho comporta diversas alternativas. Literalmente, a tradução seria “A rosa antiga está no nome e dela nada temos senão os nomes”. Uma outra tradução mais satisfatória seria “quando a rosa deixa de existir, dela nos resta apenas o seu nome”. Ou, talvez, “conhecemos as coisas do passado pelos nomes e, quando elas deixam de existir, delas restam apenas isso: os nomes”.

Portanto, o “Nome da Rosa” significa o nome que remanesce de algo que existiu no passado e que desapareceu. Nós sabemos muito pouco do que ocorreu no passado. Como esses fatos passados foram referidos em palavras, só sobrou a estória contada. Entre os fatos reais e a estória contida nas palavras, sobrevive apenas essa última.

A escolha do título revela uma opção filosófica central do autor, consistente em negar a relação necessária entre nomes e objetos. Ele reconhece que as coisas do mundo têm uma realidade distinta do discurso que sobre elas é produzido. O conhecimento é produzido por meio das palavras. Talvez a única realidade a que tenhamos efetivo acesso sejam as palavras. As palavras constroem uma “realidade”, que é dotada de autenticidade própria – ainda que não se confunda com os eventos fáticos que conduziram à produção do discurso. Todos os fatos são transitórios e se perdem, menos as palavras que a eles se reportam.

Portanto, o título do livro é uma profissão de fé filosófica do autor. E a obra é um exercício dessa concepção, no sentido da possibilidade de (re)construir, por meio das palavras, um mundo inteiro, uma situação aparentemente concreta, dotada de uma elevada carga de verossimilhança. Não é possível afirmar que a estória é falsa porque isso implicaria aceitar que algumas estórias são (ou podem ser) verdadeiras. E estórias são isso: estórias. Contradizendo o dito popular, o “vento” leva tudo, menos as palavras.

A escolha do nome teve outra função, segundo reconhecido pelo próprio autor em um escrito posterior, datado de 1983 (publicado nas edições mais recentes da obra). Umberto Eco afirma que o “nome” de um livro condiciona a leitura e a interpretação realizada. Diz, no entanto, que “Um título deve confundir as ideias, não enquadrá-las”. As pessoas formam uma preconcepção sobre a obra a partir do seu título.

Ao escolher O Nome da Rosa, Umberto Eco faz com que nenhum leitor inicie o livro com uma estimativa próxima sobre o seu conteúdo. A compreensão do significado do título somente é desenvolvida na última linha da obra, tal como acima exposto.

6) A rejeição à influência do autor

A escolha do título do livro também se enquadrou numa proposta de reduzir as interpretações formuladas a partir da identidade do próprio autor. Umberto Eco afirmou, no já referido estudo complementar, que:

“Um narrador não deve fornecer interpretações da própria obra, caso contrário não teria escrito um romance”.

“O autor deveria morrer após ter escrito. Para não perturbar o caminho do texto”.

“Quando a obra está terminada, instaura-se um diálogo entre o texto e seus leitores (o autor fica excluído)”.

Essas ponderações são muito relevantes porque Umberto Eco rejeitava paralelismos entre a obra e realidades contemporâneas. Afirmava que o seu maior prazer consistia em examinar teses sobre a obra que nunca tinham sido concebidas (ao menos, conscientemente) por ele. Ele propõe uma hermenêutica aberta quanto ao seu livro, que propicie propostas subjetivas, desenvolvidas autonomamente por cada leitor.

7) Um livro sobre palavras

O Nome da Rosa é um livro sobre as palavras. É um exercício sobre o poder das palavras na construção das realidades humanas. As coisas em si e as palavras em si não se confundem, ainda que essas últimas sejam produzidas a propósito daquelas. E a realidade das palavras talvez seja ainda mais consistente do que a realidade das coisas, rejeitando-se uma concepção essencialista que vincule as palavras a algum sentido prévio, autônomo e intrínseco.

“Tal é a magia dos falares humanos, que por humano acordo significam frequentemente, com sons iguais, coisas diferentes” (p. 320).

“… é agora sabido que diferentes são os nomes que os homens impõem para designar os conceitos, e iguais para todos são apenas os conceitos, signo das coisas” (p. 383).

8 Um livro sobre os livros

O Nome da Rosa é um livro sobre livros. Uma porção significativa da Civilização humana refere-se a livros. Talvez seja exagero afirmar que os livros tenham produzido a própria condição humana – mas talvez não. Nós somos o que somos porque escrevemos e lemos o que os nossos antepassados escreveram. A Civilização somente tornou-se possível mediante a ação humana sobre o mundo exterior: os livros preservaram, corrigiram e (por que não?) criaram essa ação.

Percebia agora que não raro os livros falam de livros, ou seja, é como se falassem entre si” (p. 318).

“Os livros não são feitos para acreditarmos neles, mas para serem submetidos a investigações” (p. 347).

“Um livro é feito de signos que falam de outros signos, os quais por sua vez falam de coisas” (p. 423).

Não seria um exagero afirmar que Umberto Eco valorizava mais os livros do que a própria realidade. O trecho escolhido por ele para início da obra – que se encontra transcrito também no início deste ensaio – reflete um sentimento compartilhado por uma parcela enorme da intelectualidade. A paz e a tranquilidade – senão a felicidade – somente podem ser encontradas na leitura de um bom livro, realizada em qualquer lugar, por mais estranho que o seja, por mais reduzido que o espaço se apresente. Quantos de nós não compartilhamos desse sentimento?

Ou seja, Eco se propôs a produzir um livro para ser aproveitado pelos amantes da literatura. Um livro muito denso no seu início, exatamente para permitir a construção de um universo apartado. Aqueles que sobrevivem às primeiras cem páginas do livro, estão capturados por uma dimensão espacial e histórica criada com enorme maestria pelo autor. O leitor ingressa nesse “mundo” e se desconecta da realidade da sua própria vida. A Abadia torna-se parte de sua existência e se torna um interlocutor nos diálogos sobre temas essenciais à condição humana.

9) Um livro sobre dominadores e dominados

O Nome da Rosa é um livro sobre dominadores e dominados. É uma abordagem da realidade de uma sociedade num momento determinado, em que a maioria da população (as massas) é tratada apenas como os “simples”. Mas grande parte das considerações realizadas são muito atuais e poderiam ser desenvolvidas a propósito dos nossos tempos.

“Os simples são carne de matadouro, de se usar para colocar em crise o poder adverso, e para sacrificar quando não prestam mais” (p. 187).

Segundo o interesse dos dominadores, os “simples” devem manter essa condição, o que exige inclusive evitar a oportunidade para que surja o questionamento sobre a correção desse estado de coisas:

Os simples não devem falar. Este livro teria justificado a ideia de que a língua dos simples é portadora de alguma sabedoria” (p. 506, Jorge).

O mero acesso à comida é suficiente para assegurar a dominação. Algumas passagens mais marcantes do livro se relacionam ao poder que um prato de comida assegura sobre os miseráveis. Mas a disputa econômica desenvolve-se nas mais diversas dimensões. Coloca-se no relacionamento direto entre a aristocracia e a plebe, mas também propicia confrontos no âmbito da Igreja Católica.

Há uma disputa frontal entre as teses dos Franciscanos e o interesse da acumulação da riqueza consagrado em outras ordens religiosas. A descrição da pobreza essencial das populações “simples” contrasta com a exposição dos tesouros acumulados no interior do Monastério.

10) Um livro sobre o poder do Conhecimento

O Nome da Rosa desenvolve-se em torno do Conhecimento. Mais ainda, refere-se à instrumentalização do Conhecimento para a dominação entre os sujeitos, inclusive em dimensões individuais.

Na trama, algumas das personagens submetem-se espontaneamente à dominação alheia para obter acesso ao Conhecimento. Tão relevante quanto a dimensão individual é também a instrumentalização do Conhecimento para a dominação social.

Na obra, a Biblioteca apresenta uma centralidade marcante. Para todos que amam livros, a biblioteca representa uma concretização terrena do Paraíso. A estória se desenvolve a propósito de uma extraordinária biblioteca, onde se encontram os livros mais importantes da História até a época, provenientes de todos os tempos e lugares.

Guilherme de Baskerville está tremendamente atraído pela Biblioteca, onde espera encontrar livros referidos por fontes diversas e ter acesso a novos conhecimentos.

O Nome da Rosa utiliza a biblioteca também como um símbolo para questões muito mais complexas. Se é verdade que a Biblioteca é uma representação do próprio Conhecimento, quem detém o controle da Biblioteca domina o próprio Conhecimento.

Ou seja, a Biblioteca é instrumento não apenas da preservação das obras como do impedimento ao seu acesso. Na estória, o ingresso na Biblioteca não é livre. A função de bibliotecário é central na existência do Monastério e o seu titular é o único autorizado a entrar nas suas dependências. A Biblioteca é construída como um labirinto, destinado também a impedir o acesso e a localização dos livros. O controle sobre a biblioteca (e o conhecimento, portanto) produz a diferenciação entre dominadores e dominados.

“E então uma biblioteca não é um instrumento para divulgar a verdade, mas para retardar sua aparição?” (p. 318).

Há uma disputa intensa entre Guilherme e Jorge quanto à liberação produzida pelo Conhecimento.

“O que não significa que os segredos não devam ser revelados, mas que compete aos sábios decidir quando e como” (p. 126).

E não se trata apenas de diferenciação entre elites governantes e governados. Trata-se de evitar que, no âmbito da própria elite, haja o livre acesso a todas as informações disponíveis.

“Entretanto muitas vezes, os tesouros da ciência devem ser defendidos não contra os simples, mas contra os outros sábios” (p. 125).

Por isso também, o controle do conhecimento é essencial. A difusão do conhecimento coloca em risco os processos sociais de dominação.

“Tu viste ontem como os simples podem conceber, e pôr em prática, as mais túrbidas  heresias, desconhecendo quer as leis de Deus quer as leis da natureza. Mas a igreja pode suportar a heresia dos simples, que se condenam sozinhos, arruinados por sua ignorância. … Basta que o gesto não se transforme em desígnio, que este vulgar não encontre um latim que o traduza… Mas este livro poderia ensinar que se libertar do medo do diabo é sabedoria…” (p. 502, Jorge).

Aliás, um dos pontos marcantes reside na inviabilidade de comunicação entre Adso e a população que habita a região. Adso fala diversas línguas, mas se comunica basicamente por meio do latim. A população pobre, os “simples”, falam dialetos incompreensíveis. Eles não podem “falar” porque nem são compreendidos pelos dominadores.

Os dominadores nem mesmo admitem um conceito homogêneo de “povo”:

“Por povo, disse, seria bom entender a universalidade dos cidadãos, mas uma vez que entre os cidadãos é necessário considerar as crianças, os obtusos, os mal viventes e as mulheres, talvez se pudesse chegar de modo razoável a uma definição de povo como parte melhor dos cidadãos, …” (p. 382).

11) Um livro sobre a conquista do poder

Precisamente por tratar da diferenciação entre dominadores e dominados, O Nome da Rosa discorre sobre outras diversas manifestações do poder, além da instrumentalização do Conhecimento para tais fins. Esse é um tema presente em todos os momentos da estória.

O livro trata da disputa entre o poder temporal e o poder do papado. Mas essa é uma questão relativamente irrelevante, eis que tende a se resolver pelo confronto militar. O lado mais forte e mais hábil vencerá e O Nome da Rosa não se detém sobre essas questões. Ainda que, nas meditações de Adso, haja o claro reconhecimento de que Ludovico não é melhor do que o Papa João XXII.

Mais interessante é a intercessão entre as diversas dimensões pode ser utilizada para manter o poder, como afirma Jorge:

“Mas a lei é imposta pelo medo, cujo nome verdadeiro é temor a Deus… E o que seremos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais benéfico e afetuoso dos dons divinos?” (p. 502).

Nessa passagem, está retratada uma concepção essencial à dominação, que se relaciona com o medo imposto ao dominado. A maior peculiaridade reside, certamente, na transformação do medo em uma benesse divina. A qualificação do medo como benéfico e afetuoso é uma monstruosa construção para legitimar a dominação.

Outra questão fundamental é a disputa sobre o poder econômico. O livro disserta sobre a miséria existente na Europa medieval, em que a imensa maioria da população padece de fome e somente pode ser mantida sob controle mediante a invocação da religião e o uso da espada. Essa situação precisa ser mantida desse modo para que os fatos continuem a seguir o seu curso. Por isso, é necessário tomar cautela com as propostas de reforma e aperfeiçoamento:

“Não te fies nas renovações do gênero humano quando delas falam as cúrias e as cortes’ (p. 154).

Os acontecimentos ocorrem durante o período das chamadas “heresias”, concepções religiosas heterodoxas que implicavam a alteração da prevalência das bases da Igreja Católica.

As heresias permitiam inclusive a liberação dos dominados, não apenas religiosa, mas em todas as demais dimensões existenciais.

“Não é a fé que um movimento oferece que conta, conta a esperança que propõe” (p. 236).

A difusão das heresias produziu consequências trágicas. Libertas das apeias impostas pela religião, as massas se levantaram e destruíram pessoas e patrimônios. Produziram massacres e foram objeto de massacres.

12) Um livro sobre a condição humana

O Nome da Rosa examina a condição humana, individual e coletiva, tratando das fraquezas e das virtudes. Mas trata especialmente daquilo que se poderia denominar de auto-engano. De modo geral, os seres humanos não têm consciência de seus próprios defeitos. Embora vinculados a valores distintos, todos têm a profunda certeza de sua própria correção. Ninguém tem consciência das próprias falhas. Os seres humanos impõem aos demais sofrimentos profundos sem compreender a dimensão dos próprios equívocos, das próprias limitações. Como diz Guilherme, numa passagem fundamental:

“O diabo não é o príncipe da matéria, o diabo é a arrogância do espírito, a fé sem sorriso, a verdade que não é nunca presa de dúvida” (p. 504).

Em outra passagem, há uma confissão muito humana:

“Mas me aconteceu frequentemente achar as representações mais sedutoras do pecado justamente nas páginas daqueles homens de virtude incorruptível, que delas condenam o fascínio e os efeitos” (p. 117).

A invocação aos valores fundamentais pode ser acompanhada pela afirmação de valores opostos:

“Como se à margem de um discurso que por definição é o discurso da verdade, se desenvolvesse, profundamente ligado a ele, um discurso mentiroso sobre um universo virado de cabeça para baixo…” (p. 113).

13) Um livro sobre a função de julgar

Algumas das passagens mais intensas do livro envolvem as funções de investigar e de julgar. Guilherme avalia os julgadores com palavras muito pesadas, a partir inclusive do reconhecimento das limitações inerentes à condição humana. Afirma, então:

“fiz parte eu também desses grupos de homens que acreditam produzir a verdade com o ferro incandescente…. E foi por isso que renunciei a essa atividade. Faltou-me coragem de inquirir sobre as fraquezas dos maus, porque descobri que são as mesmas fraquezas dos santos” (p. 97).

Nesse contexto, não se pode excluir que a atuação do julgador também seja entranhada por defeitos e valores negativos:

“‘Vós, portanto’, disse o Abade em tom preocupado, ‘estais me dizendo que em muitos processos o diabo não apenas sobre o culpado, mas talvez e acima de tudo sobre os juízes?’” (p. 69).

As limitações do julgamento decorrem inclusive da contaminação produzida pela demanda coletiva pela condenação e pela exposição dos culpados:

“Quem sou eu para emitir juízos sobre as tramas do maligno, especialmente’, acrescentou, parecendo querer insistir neste ponto, ‘em um caso em que os que tinham dado início à inquisição, os bispos, os magistrados civis e todo o povo, talvez até os próprios acusados, desejavam verdadeiramente sentir a presença do demônio?…” (p. 69).

Em outro ponto, evidencia que a função de julgar não se destina necessariamente a revelar a verdade, mas a produzir culpados:

“Frequentemente os inquisidores, para dar prova de solércia, arrancam a qualquer custo uma confissão do acusado, achando que bom inquisidor é só aquele que conclui um processo encontrando um bode expiatório” (p. 67).

Esse é um problema ainda mais grave porque há a tendência a combater o fogo com o fogo, valendo-se dos mesmos instrumentos dos infratores. Como diz Bernardo, o grande inquisidor do livro, dirigindo-se ao antigo inquisidor, Guilherme:

“Tu o sabes também, não se lida tantos anos com os endemoninhados sem vestir o seu hábito…” (p. 415).

Embora aludindo especificamente a um inquisidor, as palavras de Guilherme podem ser aplicadas de modo generalizado:

“Porque a Bernardo não interessa descobrir os culpados, porém queimar os acusados” (p. 421).

E o processo – especialmente quando não observa limites inerentes à dignidade humana – conduz não necessariamente à revelação da verdade. Nas palavras de Guilherme:

“sob tortura, ou ameaçado de tortura, um homem não só diz aquilo que fez mas também aquilo que desejaria fazer, ainda que não soubesse” (p. 416).

14) Conclusão

O Nome da Rosa produz uma meditação sobre a condição humana, especialmente num cenário de ausência da presença do Estado. A estória se passa num período histórico anterior à afirmação do Estado Moderno. Essa circunstância conduz à impertinência de uma plêiade de valores e soluções inerentes à modernidade, que condicionam o nosso modo de pensar a própria Civilização. A nossa visão de mundo incorpora, de modo inconsciente, uma pluralidade de limites formais, que induzem à superação dos problemas que afetavam as populações medievais.

No entanto, os temas centrais a O Nome da Rosa são inerentes à nossa condição humana e ao modo de interação entre os sujeitos. A supressão da figura do Estado e dos mecanismos de repressão por ele desenvolvidos permitem uma visualização mais clara quanto à individualidade humana. O resultado não permite um grande otimismo. Os seres humanos, no passado e no presente, produzem grandes e belos feitos e grandes barbaridades. Em alguns casos, essas são apenas facetas de um mesmo indivíduo. Essa compreensão é essencial para todos nós, mas com grande certeza para os operadores do Direito.

Alguém poderia contrapor que o grande defeito de O Nome da Rosa consiste em colocar num cenário do passado seres humanos dotados de virtudes e defeitos inerentes apenas à sociedade moderna. Mas essa é uma objeção não admissível. É rebatível mediante a ponderação final da própria obra: “conhecemos as coisas do passado pelos nomes e, quando elas deixam de existir, delas restam apenas isso: os nomes”. Não temos nenhuma certeza sobre como eram as pessoas durante o séc. XIV. Apenas podermos conhecê-las por meio das palavras que foram escritas à época: depois que a Rosa deixou de existir, tudo o que nos restou foi O Nome da Rosa.


Esse texto foi publicado na obra O que os grandes livros ensinam sobre Justiça (org. José Roberto de Castro Neves), Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019, ps. 313-329.

O Nome da Rosa se inicia com essa passagem.

O Nome da Rosa, de autoria de Umberto Eco, foi publicado em italiano, no ano de 1980. O presente texto toma por base a 10. edição brasileira do livro (Editora Record, 2017), com tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade.

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