Marçal Justen Filho*
Numa das regiões mais movimentadas de São Paulo, há duas seringueiras gigantescas. Lado a lado e com troncos próximos, elas acabam produzindo uma árvore única. Com dezenas de metros de altura, frondosas, destacam-se no meio de uma paisagem urbana composta por centenas de construções e edifícios. Ficam na Rua Bela Cintra, a poucos metros da Rua Oscar Freire, na região dos Jardins.
As árvores ficam realmente no meio das construções. Um dos mais atraentes restaurantes de São Paulo foi construído em torno das Seringueiras. É um pequeno restaurante de comida francesa, chamado Le Chef Rouge. Uma daquelas preciosidades que São Paulo é pródiga em produzir. A comida é da melhor qualidade. Mas o mais impressionante é que as duas seringueiras crescem dentro do restaurante, construído ao seu redor. A comida não seria tão boa se o espaço não fosse compartilhado com aquelas árvores monumentais.
Verdadeiramente colossos impávidos, as árvores se situam por sobre a mortal dimensão humana. Milhares de pessoas circulam pela região diariamente, sem se aperceber da sua existência, sem aproveitar o privilégio da sua proximidade. Afinal, ninguém tem tempo para essas superfluidades de aproveitar a beleza das coisas ou admirar-se com o quase paradoxo que se tornou a coexistência do homem com a Natureza.
Mas as Seringueiras da Bela Cintra me propiciam mais do que meditações estéticas. São uma provocação irresistível para um operador do direito.
As árvores são gigantescas, dotadas de milhares de galhos e de centenas de milhares, senão milhões, de folhas. Causa espanto que um organismo seja dotado de condições para promover a manutenção e a alimentação de todos esses bilhões ou trilhões de células, localizadas em tamanhas distâncias relativas.
Eu não consigo deixar de estabelecer uma comparação com os organismos estatais. A Administração Pública brasileira seria capaz de organizar serviços que pudessem assegurar a manutenção e a alimentação de suas células – nós, os seres humanos – numa dimensão comparativamente semelhante à das Seringueiras da Bela Cintra? Não posso conter uma resposta negativa, imediata. Triste Administração Pública brasileira, esmagada por formalismos inúteis e por uma absoluta incapacidade de discernir a razão da própria existência ou a finalidade a ser atingida.
Porque há uma diferença fundamental. As Seringueiras existem porque são, justificam-se em si mesmas. Mas a Administração existe para um fim. A Natureza é. A Administração Pública, como todas as criações do ser humano, é apenas um meio para realizar algo, somente pode justificar-se em vista das finalidades buscadas e da sua efetiva capacidade de as realizar.
A Administração Pública brasileira não consegue ser uma Seringueira. Talvez um tomateiro?
O meu consolo é que ninguém teve a ideia de criar um órgão administrativo encarregado de promover e gerir a existência daquelas duas Seringueiras. Porque nós, seres humanos, tolamente supomo-nos capazes de aperfeiçoar tudo o que nos rodeia. No Brasil, essa concepção fáustica alcança o seu ápice na ilusão de uma Administração Pública apta a corrigir o mundo.
Fico a imaginar a criação do Ente Estatal Protetor das Seringueiras da Bela Cintra – EEPSBC. Felizmente, estou delirando. E agradeço à realidade: seria tão mais triste a vida se o EEPSBC existisse porque as Seringueiras da Bela Cintra não conseguiriam sobreviver a isso. Posso continuar a apreciar as Seringueiras, na doce ilusão de que a Administração Pública brasileira delas nunca cogitará.
*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.