Arquivo de novembro de 2015

Publicado por Marçal Justen Filho em 6.11.2015 às 20:55

Coluna da Gazeta do Povo – Mas temos muito ainda a falar sobre licitação

Marçal Justen Filho*

O caderno Justiça e Direito, de outubro deste ano, trouxe um interessante artigo de Egon Bockmann Moreira ( “Não me fale da 8.666!”), que permite um diálogo indispensável.

De fato, a Lei 8.666 representa hoje um obstáculo ao desenvolvimento nacional. É necessário substituí-la por um modelo mais adequado, com uma renovação de paradigmas.

Egon defende a necessidade de “esquecermos” a Lei 8.666 e lembra a existência das outras leis de licitação (Pregão, RDC, por exemplo). E se opõe à aplicação subsidiária da Lei 8.666 aos outros modelos licitatórios.

Ele tem razão, sob um ponto de vista. A disputa sobre a Lei 8.666 produz uma espécie de paralisia, que impede o desenvolvimento de muitas contratações. A preocupação em discutir os defeitos da 8.666 acaba se sobrepondo à adoção de providências práticas para resolver os problemas reais. Produz-se uma espécie de paralisia administrativa, que é justificada pela invocação ao defeitos (reais ou imaginários) da 8.666. A infindável discussão sobre a 8.666 torna-se o centro das atividades administrativas, sem nenhuma eficácia prática.

Mas isso não significa que seja possível esquecer a Lei 8.666. O primeiro problema é que a licitação tem dois núcleos essenciais: um é a habilitação e outro é o julgamento das propostas. A Lei 8.666 continua a disciplinar a habilitação em todas as licitações. Nenhuma das leis posteriores sobre licitação dispôs sobre a habilitação. Portanto, em toda e qualquer licitação, incidirá a Lei 8.666 na questão da habilitação. Isso envolve um efeito acessório inafastável, relacionado com a identificação de defeitos sanáveis e insanáveis. Por isso, não tem jeito de esquecer a Lei 8.666.

Mas o problema principal é que não adianta esquecer a Lei 8.666. As outras leis de licitação são quase tão ruins quanto ela. Seguem a mesma sistemática, com alguns aperfeiçoamentos pontuais. Vejam o pregão, cantado em prosa e verso por ter permitido grande economia para os cofres públicos. Ninguém fala que o pregão beneficia enormemente as grandes empresas, que têm condições de praticar preços muito mais reduzidos. O pregão destruiu as pequenas e médias empresas – a ponto de o governo ter sido obrigado a criar benefícios diferenciados para as micro e pequenas empresas. Ou seja, os ganhos econômicos obtidos com o pregão são parcialmente compensados com os incentivos assegurados às micro e pequenas empresas.

Mas o problema essencial do pregão é a consagração absoluta da chamada seleção adversa. O poder público não conhece aquilo que compra e o critério de escolha é o preço mais reduzido possível. Isso produz um incentivo ao mercado oferecer produtos imprestáveis por preço reduzido: o pregão conduz, em parte relevante dos casos, o governo a pagar pouco por algo que não vale nada. A redução do preço no pregão é acompanhada da redução da qualidade. A margem de lucro do licitante continua sempre a mesma. Não que o pregão não tenha trazido benefícios. É claro que trouxe. Mas a estruturação adotada permite desvios insuportáveis.

Críticas semelhantes podem ser realizadas a todas as leis de licitação vigentes. Todas são ruins porque não preveem mecanismos de participação, discussão e disputa efetiva entre os licitantes.

Há uma única alternativa para resolver o problema da licitação: ampliar a competição. Isso envolve não apenas alterar radicalmente a disciplina da habilitação (que se encontra onde, mesmo? Na 8.666). É necessário consagrar o chamado “diálogo competitivo”, permitindo que os competidores controlem-se entre si. Nessa linha, os recursos e as impugnações dos competidores não são um problema, são a solução. As críticas da Administração aos recursos e impugnações refletem a postura equivocada em face da sociedade.

Por isso, o recurso administrativo é tão importante. É uma oportunidade para os particulares demonstrarem que a proposta escolhida pela Administração não é a mais vantajosa. São um instrumento para evidenciar equívocos praticados. O problema é que a Administração parece tomar o recurso como um desrespeito, uma espécie de insulto: como o particular ousa insurgir-se contra a decisão da autoridade? Ao ver da Administração, o recorrente deveria ser punido por sua ousadia.

É necessário superar a arrogância estatal. Especialmente em temas econômicos, o governo sabe muito menos do que o particular. Ou se instaura uma colaboração efetiva entre o Estado e os particulares ou o resultado continuará a ser a permanente repetição do fracasso. Então, falar ou não falar da 8.666 não fará diferença.

*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.



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