Arquivo de março de 2017

Publicado por Marçal Justen Filho em 22.03.2017 às 15:40

Entrevista sobre licitações e contratações da Administração Pública

20/03/17 – Na décima primeira entrevista exclusiva para a Comunidade de Prática de Compras Públicas da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), o professor e Marçal Justen Filho falou sobre licitações e contratações da Administração Pública. As perguntas foram elaboradas pela professora Marinês Restelatto Dotti.

Marçal Justen Filho: Mestre e Doutor em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná de 1986 a 2006, Visiting Fellow no Instituto Universitário Europeu (Itália, 1999) e Research Scholar na Yale Law School (EUA, 2010/2011). Advogado, fundador e sócio de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini – Sociedade de Advogados. É autor de diversas obras jurídicas e palestrante frequente em conferências nacionais e internacionais.

Marinês Restelatto Dotti é Advogada da União. Especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autora de artigos jurídicos sobre licitações, contratos administrativos e convênios. Coautora das seguintes obras: (a) Políticas públicas nas licitações e contratações administrativas; (b) Limitações constitucionais da atividade contratual da administração pública; (c) Convênios e outros instrumentos de Administração Consensual na gestão pública do século XXI. Restrições em ano eleitoral; (d) Da responsabilidade de agentes públicos e privados nos processos administrativos de licitação e contratação; (e) Gestão e probidade na parceria entre Estado, OS e OSCIP; (f) Microempresas, empresas de pequeno porte e sociedades cooperativas nas contratações públicas; (g) Comentários ao RDC integrado ao sistema brasileiro de licitações e contratações públicas.

1. O art. 5º da Lei nº 12.846, de 2013 (lei anticorrupção), prevê um elenco de condutas que configuram atos lesivos à administração pública, algumas relacionadas a licitações e contratos. Na sua opinião, o elenco indicado no referido dispositivo é exemplificativo ou exaustivo?
Marçal: O elenco do art. 5º da Lei 12.846 é exaustivo, mas apenas para os fins da disciplina prevista no referido diploma. Ou seja, existem outras hipóteses de condutas ilícitas, sujeitas a reprovação, não previstas no referido art. 5º. Essas outras manifestações de ilicitude se subordinam a regime jurídico distinto. Deve-se ter em vista que o regime da Lei 12.846 envolve uma responsabilização diferenciada e peculiar, caracterizada pelo sancionamento não apenas à própria pessoa jurídica em cuja órbita foi praticada a conduta reprovável, mas também a outras sociedades (controladoras, controladas e coligadas). Essa responsabilização objetivada e ampla somente incidirá nas hipóteses em que o ilícito for subsumível às hipóteses do art. 5º. Em síntese, não se trata de uma limitação do sancionamento por ilicitude, mas de limitação da incidência do regime sancionatório diferenciado previsto na Lei 12.846.

2. Quais seriam os principais mecanismos e procedimentos internos a serem adotados pela pessoa jurídica de direito privado que participa de licitações e contratações promovidas pela administração pública, para o efeito de impedir desvios, fraudes ou irregularidades nesses processos?
Marçal: É inviável formular uma resposta exaustiva para a pergunta apresentada. Em primeiro lugar, não se afigura possível que condutas adotadas exclusivamente no âmbito das empresas privadas propiciem o desaparecimento de desvios, fraudes e irregularidades nos processos licitatórios e de contratações públicas. O sucesso nessa empreitada depende da atuação conjunta do Poder Público (inclusive do Poder Judiciário) e do setor privado. Basta um exemplo para evidenciar a dimensão do problema. É muito usual o setor público criticar a pluralidade de oportunidades para interposição de recursos administrativos no âmbito do procedimento licitatório. Mas o recurso é um dos instrumentos para o particular opor-se à prática de irregularidades no âmbito de licitações e contratações administrativas. Não significa que todo recurso é procedente, mas implica a necessidade de assegurar amplamente o exercício do direito de o particular insurgir-se contra qualquer ação ou omissão lesiva a seus interesses.  Ou seja, o primeiro ponto reside em que o setor público e o setor privado devem atuar de como conjugado para combater a fraude. Em segundo lugar, a atuação isolada de cada empresa licitante é insuficiente para eliminar as fraudes. Será irrelevante a adoção de mecanismos internos de controle absolutamente eficientes em prevenção de fraudes por todos os licitantes menos um. A generalização dos mecanismos de combate à fraude não produzirá efeitos satisfatórios se não for praticada de modo absoluto. Significará muito mais facilitar a atuação dos desonestos. Ou seja, o grande risco é os oportunistas aproveitarem a honestidade dos demais competidores para obterem vantagens indevidas. Enfim, isso não elimina a necessidade de que cada empresa estabeleça, de modo institucional, a proscrição de práticas fraudulentas e viciadas. Isso envolve, antes de tudo, uma decisão empresarial formal, que seja traduzida em organização e procedimentos internos apropriados. Isso envolve um sistema de freios e contrapesos no âmbito da iniciativa privada, muito semelhante ao que é reputado como peculiar aos regimes democráticos de governo estatal. É imperioso eliminar o poder absoluto no âmbito da empresa privada. É tradicional afirmar que “o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe de modo absoluto…”. Esse provérbio deve ser aplicado não apenas no âmbito do Estado, mas também da empresa privada. Isso significa a exigência de uma sistemática de “separação de poderes” também no âmbito das empresas privadas. Nenhum acionista, ainda que majoritário, pode acumular todas as atribuições. É indispensável a dissociação das competências internas e a criação de estruturas organizacionais que permitam que o poder (privado) controle o próprio poder (privado). Isso envolve a criação de órgãos de controle ao interno da empresa, que não apenas impeçam, mas também identifiquem imediatamente as condições necessárias à prática de corrupção, o desvio de recursos e outras irregularidades semelhantes.  Portanto, a macroempresa privada é uma estrutura social apta a acumular enorme quantidade de poder, o que exige a imposição de instrumentos de controle e limitação.

3. Há alguma legislação estrangeira a que o Projeto de Lei do Senado nº 559, de 2013, que almeja revogar a Lei nº 8.666, de 1993, a Lei nº 10.520, de 2002 e os arts. 1º a 47 da Lei nº 12.462, de 2011, pode inspirar-se? Quais aspectos dessa legislação poderiam ser incorporados ao sistema brasileiro de licitações e contratações da administração pública?
Marçal: O sistema de licitações e contratações públicas vigente no Brasil, previsto nos diversos diplomas e cogitado nas futuras reformas, é basicamente ineficiente. Tem-se mostrado inadequado ao longo de décadas. A insistência nesse modelo é uma demonstração de teimosia, de reiteração dos erros que a nossa experiência comprovou de modo inequívoco. É usual afirmar que “contra fatos não há argumentos”, um ditado que é ignorado no setor das licitações e contratações públicas no Brasil. Sou radicalmente contrário a todas as soluções legislativas vigentes e a todas essas propostas apresentadas que se restringem a modificações pontuais. Dito isso, é muito problemático buscar soluções no estrangeiro porque o modelo de Estado no Brasil é inconfundível. Devemos ter em vista que o Estado brasileiro é extremamente intervencionista e assistencialista, o que acarreta uma enorme quantidade de contratações públicas – todas precedidas, em princípio, de licitação. Isso não significa impossibilidade de aproveitamento de experiências estrangeiras. O primeiro aspecto a ser reformado no direito brasileiro é definição clara e precisa da natureza instrumental da licitação: a licitação é um meio para atingir certos resultados. O segundo aspecto essencial é a definição mais precisa dos fins a serem atingidos. O terceiro é assegurar a mais ampla participação possível dos interessados. E o quarto é reduzir a assimetria de conhecimento, que conduz a Administração a contratar aquilo que não necessita ou comprar extremamente mal, mesmo quando paga pouco. Em todos os países do mundo, existem mecanismos de adaptação contínua nos processos licitatórios, visando realizar esses objetivos. Esses mecanismos se traduzem na redução do autoritarismo dos procedimentos e na utilização mais intensa possível dos mecanismos de mercado para benefício dos interesses a serem satisfeitos pela Administração Pública.

4. Considera que a Lei nº 13.303, de 2016, a qual dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, trouxe significativos avanços no âmbito das licitações e contratações promovidas por essas entidades?
Marçal: Sim, em termos. A ilusão de que uma lei resolve os problemas práticos é, geralmente, apenas isso: uma ilusão. A dimensão positiva ou negativa da Lei 13.303 não se resolve no plano abstrato do discurso. Deve ser examinada em vista da realidade prática. Não podemos ignorar o exemplo que nos foi proporcionado pela experiência da Petrobras – sobre a qual me manifesto nos limites dos fatos divulgados pela imprensa. A Petrobras adotou um Regulamento próprio, que já incorporava muitas das “conquistas da Lei 13.303”. Isso não impediu os desvios que têm sido noticiados continuamente pela imprensa. Não se diga que os desvios foram propiciados pela sistemática do Regulamento interno. Outras entidades, que seguiam a Lei 8.666 e a sistemática tradicional, também estão envolvidas em corrupção e irregularidades. Ou seja, é impossível eliminar a corrupção mediante apenas uma nova lei de licitações. Com alguma ousadia, eu afirmaria que qualquer modelo licitatório poderia funcionar satisfatoriamente se o contexto institucional público e privado assegurasse a ausência de corrupção e impedisse a pura e simples incompetência. Voltando à Lei 13.303, ela propicia uma margem de autonomia muito significativa para as empresas estatais exploradoras de atividade econômica. Mas isso exigirá uma enorme dose de energia, dedicação e comprometimento das empresas estatais. Caberá a cada empresa desenvolver as soluções mais apropriadas para as suas necessidades e características.  O grande desafio é a tentação a promover a ultratividade da legislação anterior. Isso se verifica quando os aplicadores da lei nova adotam interpretação que implica a preservação da lei antiga, já revogada. No caso concreto, o problema é o risco de que a Lei 13.303 seja interpretada e aplicada à luz dos entendimentos predominantes antes de sua edição.

5. De acordo com a Lei nº 13.303, de 2016, é dispensável a realização de licitação por empresas estatais para obras e serviços de engenharia de valor até R$ 100.000,00 (cem mil reais) e para outros serviços e compras de valor até R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). Ditos valores podem ser alterados, para refletir a variação de custos, por deliberação do Conselho de Administração da empresa pública ou sociedade de economia mista, admitindo-se valores diferenciados para cada sociedade. Quais critérios, inclusive no tocante à periodicidade, podem ser adotados pelo Conselho de Administração para o efeito de alterarem-se esses valores?
Marçal: A pergunta reflete o enfoque típico vigente entre nós no atual modelo licitatório. Trata-se de uma manifestação daquela tendência a interpretar a lei nova à luz da lei antiga. Veja-se: não se trata de criticar a pergunta, nem de afirmar que ela é equivocada. Muito pelo contrário, essa questão poderá apresentar enorme relevância prática, especialmente em vista de potencial preocupação dos órgãos de controle. O ponto fundamental reside em que a finalidade da Lei era remeter a solução desse tipo de questão a cada empresa estatal, à qual incumbiria avaliar as suas peculiaridades e determinar a solução mais adequada. Esse tipo de solução é um rompimento com a nossa tradição. O modelo vigente exige soluções predeterminadas, padronizadas, que sejam praticadas por toda e qualquer entidade, mesmo que absolutamente incompatíveis com as suas circunstâncias. Portanto, a pergunta reflete uma dose de espanto do intérprete, que fica até chocado com a ausência de uma “norma geral uniforme e imutável, a ser aplicada de modo geral por toda a Administração Pública”. Voltando à pergunta. No direito brasileiro, é vedada a vinculação automática de valores monetários nominais à variação inflacionária. Portanto, o fenômeno da inflação não autoriza, como regra, o reajuste automático de valores monetários nominais. Essa questão foi discutida pelo próprio STF, no RE 565.089, a propósito do art. 37, inc. X, da CF/88 (que determina que o valor da remuneração dos servidores públicos será reajustado periodicamente para fazer face à inflação). Portanto, os valores monetários nominais não são reajustados de modo automático. Por outro lado, a variação de valores monetários subordina-se às regras gerais vigentes em nosso sistema desde a implantação do Plano Real. Se não existe autorização legislativa para alteração automática dos valores em virtude da inflação, existe uma vedação a que os valores sejam alterados em período inferior a doze meses. Essa é a regra geral. Ocorre que o valor para dispensa de licitação não se confunde com um montante financeiro a ser liquidado em favor de um sujeito. Consiste apenas numa ponderação quanto ao valor de contratações que justifica a realização de licitação. Ora, o valor da contratação é uma decorrência (também) dos custos necessários à execução da prestação necessária à satisfação do interesse da parte. A Lei 13.303 reportou-se à variação dos custos, sem estabelecer regras rígidas e rigorosas, a serem observadas de modo automático. Essa foi uma opção legislativa. Se a Lei 13.303 pretendesse adotar regras rígidas, é evidente que outra teria sido a solução consagrada. Em suma, a Lei autorizou soluções heterogêneas e variáveis, cuja configuração depende das circunstâncias do mercado e das características das contratações de cada setor de atividades exploradas pela empresa estatal. Foi fixado um valor limite máximo no momento inicial, a ser observado pelas empresas estatais. Esse valor nominal pode ser elevado em vista da constatação de que, com o decurso do tempo, o valor real passou a ser mais elevado – seja em virtude da inflação geral, seja em vista de circunstâncias diferencias específicas. Existe uma margem de discricionariedade para cada empresa alterar os limites de contratação direta. Mas isso não significa existência de discricionariedade em sentido próprio. Não é admitida uma valoração sobre conveniência e oportunidade para fixação de valores de dispensa dissociados da disciplina prevista na Lei 13.303. É necessário evidenciar que os custos sofreram variações, de modo que a preservação do valor real previsto na Lei 13.303 exige a elevação do valor nominal. Indo avante, não é inadequado reportar-se à distinção entre reajuste e revisão, tradicional no âmbito dos contratos administrativos. Tomando por base essa distinção, pode-se afirmar que as variações decorrentes de inflação generalizada somente autorizam o reajuste do limite do valor de dispensa a cada doze meses. Mas não é vedada a revisão do valor, nos casos de variações imprevisíveis e específicas, de cunho extraordinário.

6. Qual a sua opinião sobre a adoção preferencial da modalidade pregão nas licitações promovidas pelas empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias, unicamente nas aquisições de bens e serviços comuns? Em vista da economicidade e celeridade processual, já mensuradas, decorrentes da utilização do pregão, entende defeituoso o dispositivo da Lei nº 13.303, de 2016, cujo texto não estendeu a utilização da modalidade também para obras de engenharia consideradas comuns?
Marçal: É verdade que a aplicação do pregão não se vincula à qualificação de um objeto contratual como serviço ou obra de engenharia. O ponto central é a existência de um objeto comum. Portanto, não vejo impedimento à utilização do pregão, mesmo para obras  e (especialmente) serviços de engenharia, quando o objeto for comum. Mas há outro aspecto a ser considerado. A pergunta reflete um dilema enfrentado pela Administração Pública diuturnamente, sem que exista uma consciência precisa do problema. Passou a ocorrer uma dissociação entre os setores administrativos encarregados de promover a licitação e aqueles investidos da gestão dos contratos. Portanto, o fim buscado pelo “departamento de licitações” é realizar a licitação mais rápida e com menos incidentes, com uma contratação imediata. Quando isso acontece, o “departamento de licitações” reputa ter cumprido as suas atribuições. Ocorre que concluir uma licitação rapidamente não significa necessariamente que foi obtido o melhor contrato possível. Dito de outro modo, é inquestionável que o pregão propicia licitações mais rápidas e redução de desembolso para a Administração. Mas daí não se segue que exista comprovação de que todo e qualquer contrato resultante de pregão é satisfatório. A questão se relaciona com o que eu denomino de “mutação dinâmica da proposta”. Num pregão, o licitante vai alterando a consistência de sua proposta à medida que reduz o preço. A redução da oferta é refletida na diminuição do custo do particular. Então, o objeto ofertado pelo licitante ao final do pregão não é o mesmo que ele cogitara ao apresentar a proposta. Portanto, a Administração convive com prestações destituídas da qualidade necessária porque o preço obtido é inferior ao necessário a assegurar uma prestação adequada. Esse é o motivo da restrição do uso do pregão para objetos comuns. A sistemática do pregão é adequada para contratação em que o padrão de qualidade do objeto licitado é padronizado, insuscetível de variação, em virtude das circunstâncias do próprio mercado. Em tais hipóteses, não se verificam os riscos da seleção adversa. Essa minha ponderação não significa rejeitar a modalidade do pregão. Minha crítica é dirigida à “compulsão do pregão”, digamos assim. Trata-se da suposição de que o pregão sempre e em todos os casos seria uma solução adequada. Pode ser mais fácil e mais rápido fazer pregão, mas isso não significa que o pregão deveria ser adotado sempre. Os economistas, há muito tempo, identificaram um fenômeno chamado de “seleção adversa”, relacionado à  chamada “assimetria de conhecimento”. Basicamente, significa que uma contratação realizada com base no menor preço absoluto, versando sobre um objeto de qualidade desconhecida, resulta como regra em uma operação não vantajosa. O comprador paga valor superior àquele necessário à obtenção do produto adequado. O tema é muito complexo e toda essa avaliação foi desenvolvida para justificar o entendimento de que o pregão não é uma solução mágica para a Administração Pública. Deve ser utilizado com uma cautela muito maior do que tem ocorrido na prática. No caso específico da indagação, a Lei 13.303 rejeitou soluções formalistas, padronizadas e obrigatórias, que possam resultar em desastres – desastres esses com os quais a Administração vem convivendo e que precisam ser evitados.

7. Recentemente o Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União (CGU) divulgou avaliação dos resultados alcançados pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes – DNIT, decorrentes da adoção do regime diferenciado de contratações públicas (Lei nº 12.462, de 2011), recomendando a essa entidade sua utilização de forma preferencial. Na sua opinião, o regime diferenciado de contratações públicas tem potencial para ser o regime jurídico de licitações e contratações da administração pública?
Marçal: Uma resposta muito simplista seria afirmar que, no atual cenário, as soluções da Lei 8.666 e da Lei 12.462 são tendencialmente equivalentes. Alguns defeitos intrínsecos e essenciais do regime anterior são mantidos no âmbito da Lei 12.462. Basta considerar que as regras sobre habilitação da Lei 8.666 continuam aplicáveis. É claro que a Lei do RDC confere uma margem muito mais adequada de autonomia à Administração para configurar um procedimento licitatório compatível com o objeto licitado. Mas vou insistir com um aspecto essencial do problema, que continua a ser menosprezado: um dos aspectos essenciais das dificuldades da Administração Pública não se relaciona com o regime jurídico da licitação, mas da contratação administrativa. A Lei 12.462 manteve o mesmo regime de contratação administrativa herdado do Dec.-lei 2.300. São concepções anteriores à Constituição de 1988 e que foram concebidas para um Brasil muito diferente do atual. Nem existiam empresas privadas com a dimensão das que existem hoje. Aplica-se aquela velha comparação: colocar um motor de Ferrari em um Fiat Uno não vai produzir bons resultados. Esse é o enfoque com o qual temos convivido: tentativas contínuas de aperfeiçoar o procedimento licitatório, sem a modernização compatível do regime contratual.

8. O art. 6º da Lei nº 12.462, de 2011, o art. 34 da Lei nº 13.303, de 2016, e o art. 21 do Projeto de Lei do Senado nº 559, de 2013, preveem o sigilo do orçamento estimado do contrato, o qual será disponibilizado estritamente aos órgãos de controle externo e interno. Qual a sua opinião a respeito do sigilo frente ao disposto no art. 3º e no art. 7º, inciso VI, da Lei nº 12.527, de 2011 (lei de acesso à informação)?
Marçal:  Sempre fui contra essa orientação de sigilo do orçamento estimado. Não consigo me convencer de que a divulgação prévia do valor do orçamento é um incentivo à elevação dos preços. Essa é uma tese que demanda prova concreta, a qual somente poderia ser produzida mediante experimentação concreta – que não existe. A minha proposta sempre foi a de ampliar ao máximo a competição. Quanto maior o número de competidores, tanto menor é o preço obtido: essa é uma lei do mercado, que não me parece ser questionável. Havendo competição satisfatória, é irrelevante o conhecimento do valor do orçamento. Mas a minha maior discordância com o sigilo é o risco de corrupção. Quem conhecer o valor do orçamento adquire uma vantagem indevida na competição. Há um segundo problema, que envolve hipóteses em que o orçamento apresenta defeitos, que o tornam inexequível. A ausência de divulgação torna impossível a revelação dos defeitos. Enfim, existe uma outra questão, que é surreal: se a melhor oferta for superior ao valor do orçamento, inicia-se uma negociação para redução do seu valor sem divulgação do referido valor. De todo modo, acho que a solução legislativa do sigilo do orçamento, embora incorreta (perdoem-me a sinceridade), é válida. A Lei de Acesso à Informação é uma lei federal, de hierarquia normativa idêntica à das leis de licitação. A exigência de sigilo do orçamento consta de leis federais posteriores à própria Lei de Acesso à Informação. Portanto, é necessário aplicar a exigência do sigilo do orçamento.

9. Como os órgãos de controle, interno e externo, podem auxiliar a administração pública a efetivarem contratações mais eficazes?
Marçal: Não me parece que a efetivação de contratações mais eficazes dependa especificamente de alguma atuação adicional dos órgãos de controle. Existe, no entanto, um distanciamento significativo entre a chamada “administração ativa” e a atividade de controle. Isso se deve a vários fatores, entre os quais a própria incerteza quanto à natureza específica e os limites das competências dos órgãos de controle, interno e externo. Isso se traduz em regime jurídico indeterminado, que não está consagrado de modo preciso e exato no direito positivo. Dou um exemplo concreto: há tendência no âmbito do TCU à consagração da tese da ausência de efeito de coisa julgada material às suas decisões. Não existe regra legal específica sobre o tema e isso proporciona efeitos dramáticos. Por outro lado, prevalece muitas vezes o entendimento de que a função do órgão de controle é “assegurar a supremacia do interesse público”. Embora ninguém consiga determinar o que isso significa, há uma tendência a resolver todas as controvérsias a favor do Poder Público, tal como se a violação da ordem jurídica pudesse ser compatível com o interesse público nas hipóteses em que o lesado é o particular. Ora, para haver contratação eficaz é indispensável ampliar a competição e exigir que a disciplina contratual seja estritamente observada – não apenas nos casos em que exista uma garantia em favor da Administração. Tem-se falado que a situação atual conduzirá à invasão do mercado de contratações públicas por empresas estrangeiras. Ora, nenhuma empresa estrangeira séria se disporá a participar de um mercado em que as condições contratuais não sejam estritamente observadas. Mas existem sugestões práticas e concretas a serem feitas. A primeira e mais urgente necessidade é a padronização dos entendimentos. Não é possível que cada contratação seja subordinada a padrões hermenêuticos distintos, provenientes de órgãos diversos. Se a AGU adota um entendimento e o TCU, outro, o gestor se encontra numa situação paradoxal, em que coexistem dois universos jurídicos distintos, cada qual com as suas regras próprias. A segunda exigência é a estabilidade dos entendimentos. Isso não significa um engessamento das orientações, mas a vedação à aplicação retroativa da nova interpretação. O rompimento da segurança jurídica acarreta efeitos insuportáveis. A terceira exigência é a compreensão do contexto em que se encontra o administrador, inclusive no tocante às necessidades concretas e as limitações existentes. O órgão de controle precisa vivenciar a situação experimentada pelo gestor, que é muitas vezes dramática. A quarta exigência é a alocação para os órgãos de gestão de recursos materiais e de pessoal com qualidade, treinamento e condições equivalentes àqueles proporcionados para os órgãos de controle. A atividade de controle é essencial para assegurar os objetivos constitucionais. Mas a atividade administrativa essencial não é o controle. A satisfação das necessidades essenciais e a promoção dos valores constitucionais mais supremos depende da atividade administrativa ativa. Portanto, os investimentos mais relevantes do Estado devem ser realizados no âmbito da atividade administrativa finalista.

10. Considera importante que órgãos e entidades públicas promovam a segregação de funções em seus processos de licitação e contratação?
Marçal: Essa é uma questão complicada, porque acarreta enorme risco de desorganização prática. Acho extremamente nocivo atribuir a autoridades diversas as atribuições de licitar, contratar e gerenciar o contrato. O resultado prático é atroz. Há um pregoeiro encarregado de conduzir milhares de licitações, com objetos os mais variados possíveis. Cabe-lhe resolver os incidentes sobre os requisitos de habilitação e sobre as propostas. Mas o pregoeiro conhece apenas as características do sistema eletrônico. A dissociação de atribuições produz o risco de transformação da licitação em um fim em si mesmo. Então, o objetivo buscado pela autoridade licitatória será concluir o certame, mesmo que o objeto contratado seja imprestável. Dito de outro modo, torna-se muito complexa uma avaliação uniforme da “eficiência” da atividade administrativa. O resultado prático tende a ser a contratação de objetos inadequados, inservíveis ou defeituosos. Acho indispensável que a licitação seja conduzida por pessoal que detenha conhecimento sobre o objeto a ser adquirido. Em termos figurados, o sujeito que vai tomar o cafezinho tem o poder-dever de acompanhar a licitação para compra do pó de café. Ou seja, a especialização de atribuições não pode conduzir à fragmentação da atividade administrativa. A eficiência nas contratações depende de que o processo na sua integralidade seja vinculado à satisfação da efetiva necessidade administrativa. Acho recomendável a especialização, mas não a segregação das atividades. Somente desse modo será ampliada a eficiência na utilização dos recursos públicos.

Entrevista publicada originalmente e disponível em:

https://comunidades.enap.gov.br/ mod/forum/discuss.php?d=77

Publicado por Marçal Justen Filho em 7.03.2017 às 14:00

Marçal Justen Filho

O Direito não é algo abstrato. Não se confunde com o texto escrito da Lei. Não se conhece
o Direito sem conhecer profundamente a vida real.
O Direito integra a vida individual e social e reflete os valores fundamentais da
Civilização. Para compreender o Direito, é necessário conhecer o passado. Mas a função
do Direito é mudar o futuro, promover a segurança e a justiça e realizar concretamente a
dignidade de todo ser humano. Por isso, a vida do operador do Direito é um compromisso
com a sociedade em que vive, com o estudo e com a atuação prática.

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