Marçal Justen Filho – Coluna Publicistas
O modelo regulatório do Estado caracteriza-se pela redução da atuação direta deste nos serviços públicos e atividades econômicas. O Estado transfere a responsabilidade dos investimentos e da gestão para o setor privado e se reserva a competência regulatória.
Esse modelo comporta algumas distorções. Duas delas são graves.
A demagogia regulatória consiste na adoção de medidas aparentemente vantajosas, conscientemente destituídas de consistência ou sinceridade, para atrair investidores privados. A demagogia regulatória é a manifestação direta da tradição do governante brasileiro, em que as promessas são um meio para obter votos ou para captar investimentos privados.
Uma vez consolidada a situação, a autoridade altera radicalmente a própria postura. Nega as vantagens ofertadas, recusa validade aos próprios atos e questiona os direitos assegurados aos investidores. Assume a posição de defensor dos fracos e oprimidos. Na demagogia regulatória, a autoridade nem era sincera quando concebeu o modelo de investimento, nem o é quando passa a atacá-lo no momento posterior. No fundo, o governante pretende extinguir o vínculo e se apropriar (de preferência, sem indenização) dos investimentos realizados. O Brasil tem convivido com a demagogia regulatória há muito tempo.
A regulação demagógica é uma anomalia distinta. Não envolve a concepção consciente de um modelo fraudulento. Nem há a intenção de eliminar a participação da iniciativa privada. O problema decorre da contaminação das decisões técnicas e jurídicas pelo interesse de obter aplausos. A regulação demagógica adota a opinião pública como critério decisório. As normas jurídicas e as exigências técnicas são respeitadas circunstancialmente. São ferrenhamente defendidas quando conduzirem a decisões que agradem à plateia.
A regulação demagógica afeta especialmente a atuação das agências reguladoras. Essas autarquias foram cercadas de garantias visando à consagração de medidas fundadas no direito e no conhecimento técnico-científico. A ausência de vinculação direta à vontade popular lhes permite decisões antipáticas à população, mas que são necessárias para realizar objetivos relevantes. Afinal, nem sempre o direito e a técnica conduzem a escolhas que agradam à população.
Isso não significa que a agência reguladora deva ser insensível às necessidades da população. Mas deve haver ponderação entre os direitos e os interesses das diversas esferas envolvidas. Nem é admissível ignorar a regulação anterior da própria agência e lhe prestar respeito somente quando conduzir a uma decisão aprovada pela opinião pública.
O modelo regulatório depende da eficiência e da neutralidade da atuação das agências reguladoras. Sem isso, as agências se tornarão mais um veículo para regulação demagógica e especialmente para a demagogia regulatória. Se for assim, arrisca ocorrer a extinção das agências reguladoras. No final das contas, a prevalência da demagogia sobre a democracia nunca traz bons resultados.
Texto veiculado no JOTA, em 10.5.2022
Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/demagogia-regulatoria-e-regulacao-demagogica-10052022