Incertezas legislativas põem em risco a infraestrutura aérea brasileira

Reportagem de Rhodrigo Deda publicada no jornal Gazeta do Povo em 17/dez/2010:

“Em grande parte dos setores, o Estado condiciona a outorga de licenças e concessões ao pagamento de valores extremamente elevados, o que torna os investimentos muito mais onerosos – o que se reflete na rentabilidade e nos preços e tarifas exigidos dos usuários.”

“Em grande parte dos setores, o Estado condiciona a outorga de licenças e concessões ao pagamento de valores extremamente elevados, o que torna os investimentos muito mais onerosos – o que se reflete na rentabilidade e nos preços e tarifas exigidos dos usuários.”

Incertezas legislativas põem em risco a infraestrutura aérea brasileira

O mais grave problema de legislação de infraestrutura no Brasil está na área dos aeroportos e do transporte aeronáutico. A situação é tão preocupante que há o risco de colapso do sistema. Essa é a avaliação do jurista Marçal Jus­ten Filho, autor de diversos livros na área de Direito Administrativo. A análise de Justen Filho serve de alerta, ainda mais num momento em que o Brasil se prepara para dois eventos internacionais de vulto – a Copa do Mundo de 2014 e a Olímpíada do Rio de Janeiro, de 2016.

“A legislação setorial é antiga e imprecisa. A Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) é uma das agências que encontra maior dificuldade no cumprimento de suas funções”, afirma Justen Filho. Ele lançou no dia 8 de dezembro o livro Infrastrutcture Law of Brazil, no qual, junto com César Guimarães Pereira, traz artigos de diversos autores, cujo objetivo é apresentar os principais aspectos do direito público brasileiro para o público anglo-saxão.

Serviço: Infrastrutcture Law of Brazil, Marçal Justen e César Guimarães Pereira, organizadores *Editora FórumO jurista, que atualmente realiza estudos em Yale, Connecticut, concedeu entrevista à Gazeta do Povo, na qual tratou dos temores dos estrangeiros em investir no Brasil e dos entraves existentes na legislação brasileira no que se refere à infraestrutura e às distorções tributárias nesse setor. Para ele, tributar energia elétrica, por exemplo, é “uma ofensa à dignidade humana”, dada a essencialidade do bem para a realização de quaisquer projetos. “Não é casual, portanto, a introdução de um regime tributário mais benéfico para obras de infraestrutura relacionadas com os projetos relevantes, tal como a Copa do Mundo.”

Conforme o jurista, a legislação atual brasileira é um entrave para empreendimentos privados de infraestrutura no país. Ele afirma que a legislação regulatória do país é obsoleta e inadequada para enfrentar as necessidades que surgem do ritmo vertiginoso das relações sociais e econômicas destes tempos.

Segundo Justen Filho, as incertezas legislativas, em especial as referentes às agências reguladoras, não dão estabilidade e segurança para investimentos privados. E são essas incertezas regulatórias em setores essenciais – como aeroportos, ferrovias e internet – que emperram a execução de novos projetos. “Existe um risco jurídico relevante para a iniciativa privada. Aliás, isso ficou evidente no episódio do trem-bala. O modelo apresentava tamanha quantidade de incertezas que a generalidade dos interessados desistiu de participar da disputa.” Acompanhe abaixo os principais trechos da entrevista:

O senhor está lançando a obra Infrastructure Law of Brazil. Qual a ideia central da obra?

A ideia central da obra é permitir aos não brasileiros (em especial, aqueles de língua inglesa) um contato mais direto com o direito brasileiro. Usualmente, os investidores e advogados de língua inglesa consideram que a estrutura básica do direito anglo-saxão se aplica no Brasil – entendimento que deve ser tomado com enormes reservas. O livro, escrito em inglês, contém uma exposição sobre os principais aspectos do direito público brasileiro. Além disso, apresenta os principais textos legislativos em versão bilíngue. Isso permite ao leitor estrangeiro conhecer de modo mais efetivo o direito brasileiro. É uma porta de entrada para o estrangeiro conhecer o direito brasileiro.

Em um momento de pré-Copa do Mundo de 2014 e, mais adiante, Olímpiada em 2016, quais são os principais desafios a serem superados nos próximos anos, no que se refere à Legislação de Infraestrutura no Brasil?

O grande desafio para a Copa de 2014 e para a Olimpíada, sob o prisma legislativo, é obter investimentos necessários e executar as obras no prazo previsto. Existem necessidades enormes no setor de portos, aeroportos, transporte público. É necessário alterar o ritmo tradicionalmente adotado entre nós para a execução das obras. Há uma cultura de ausência de planejamento tempestivo. Estamos vendo a postergação das obras para o último momento possível. Nunca se está adiantado. Sempre estamos atrasados nos cronogramas. Isso eleva os custos e afasta os investidores e o público.

O senhor abordou o tema – Legislação de Infraestrutura no Brasil – também num painel em Miami. Quais as principais preocupações de estrangeiros a respeito do assunto?

Os estrangeiros temem especialmente a incerteza da disciplina jurídica brasileira. Eles não conseguem aceitar que as condições previstas num edital ou em um contrato possam ser alteradas unilateralmente pela Administração ou que a própria contratação possa ser objeto de questionamento perante o Poder Judiciário. Existe ainda o temor da demora na solução dos processos perante o Poder Judiciário.

Quais são os principais problemas legislativos do Brasil referentes à infraestrutura? O que precisa melhorar?

Existem dois problemas essenciais no plano legislativo. O primeiro é a incerteza regulatória. O segundo é a incompletude regulatória. Ambos estão relacionados. Existe incerteza porque a legislação, na esmagadora maioria dos casos, apresenta uma ausência de definição mais exata e precisa das “regras do jogo”. Não existe regulação sem estabilidade e segurança, porque os particulares não se dispõem a investir se não for possível formular previsões sobre a disciplina setorial. Ou, se os particulares se dispuserem a investir, vão transferir para as suas propostas um preço adicional correspondente à insegurança. No Brasil, há uma grande dose de incerteza regulatória em setores essenciais, tais como dos portos, das ferrovias, dos aeroportos, internet banda larga. Existe indicação de reforma da legislação das telecomunicações. Por outro lado, a disciplina regulatória é incompleta e não fornece solução para questões essenciais. Então, existe um risco jurídico relevante para a iniciativa privada. Aliás, isso ficou evidente no episódio do trem-bala. O modelo apresentava uma tamanha quantidade de incertezas que a generalidade dos interessados desistiu de participar da disputa. Mas a dificuldade não reside apenas na dimensão legislativa. Há problemas no âmbito da execução concreta das normas.

Quais sãos principais gargalos jurídicos que podem causar problemas nos próximos anos?

Em termos amplos, o principal gargalo jurídico é obsolescência da disciplina regulatória vigente. Em todos os setores, observa-se que a legislação é inadequada para enfrentar as necessidades surgidas do ritmo vertigionoso das relações sociais e econômicas. A legislação acaba por se tornar um entrave à implantação de novos empreendimentos e submete as empresas do setor de infraestrutura a um processo de gestão menos eficiente do que as práticas adotadas nas empresas privadas que atuam em outros segmentos empresariais. Em termos específicos, o gargalo mais evidente se relaciona com a disciplina jurídica dos aeroportos e do transporte aeronáutico. Não é o único problema, mas é o mais grave, no sentido de que existe um risco de colapso do sistema. A legislação setorial é antiga e imprecisa. A Anac é uma das agências que encontra maior dificuldade no cumprimento de suas funções, talvez porque a esmagadora maioria dos aeroportos é operada por uma empresa estatal, a qual subsidia as atividades de muitos aeroportos com as receitas recebidas daqueles aeroportos que são os mais movimentados. Os recursos produzidos por Guarulhos, por exemplo, acabam sendo canalizados para manter aeroportos destituídos de rentabilidade econômica. Depois, a Infraero está obrigada a prestar os serviços de infraestrutura aeronáutica ao mesmo tempo em que administra os verdadeiros “shopping centers” em que os aeroportos se transformaram.

A eventual concessão dos aeroportos para a iniciativa privada é algo a ser discutido. Mas, mesmo que essa não seja a solução adotada, é imperioso que a gestão dos serviços aeronáuticos seja dissociada da administração dos empreendimentos comerciais existentes nos aeroportos (espaços comerciais, publicidade etc.). E é indispensável estabelecer padrões de qualidade a serem rigorosamente observados.

Que instrumentos jurídicos não são usados atualmente e poderiam passar a ser usados para facilitar a implementação de projetos de infraestrutura no país?

No tocante ao setor público, a ausência mais notável envolve a ausência de legislação específica disciplinando as licitações e contratos das empresas estatais. Elas estão submetidas ao mesmo regime da Administração Pública propriamente dita. Isso impede a adoção de providências e a realização de investimentos necessários, no ritmo adotado pelas empresas privadas. A solução desse problema vem sendo uma reclamação de todos há muitos anos. Outro problema é a concepção de que a outorga de licenças para os particulares é um meio de obtenção de receitas para o Estado. Em grande parte dos setores, o Estado condiciona a outorga de licenças e concessões ao pagamento de valores extremamente elevados, o que torna os investimentos muito mais onerosos – o que se reflete na rentabilidade e nos preços e tarifas exigidos dos usuários. O terceiro problema é a distorção absurda da carga tributária no Brasil. As infraestruturas essenciais são destinadas à prestação de serviços a todos. Esses serviços são pesadamente tributados, o que significa a transferência da carga tributária para os preços. Tributar o fornecimento de energia é uma ofensa à dignidade humana, precisamente porque a energia é essencial para a realização de todos os projetos. Não é casual, portanto, a introdução de um regime tributário mais benéfico para obras de infraestrutura relacionadas com os projetos relevantes, tal como a Copa do Mundo. Mas se existe uma medida a ser adotada para assegurar a implantação da infraestrutura necessária, essa medida é a eliminação da tributação sobre os serviços públicos.



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