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Publicado por Marçal Justen Filho em 14.03.2016 às 21:23

Coluna da Gazeta do Povo – A Lei Anticorrupção, o Novo CPC e as figuras da responsabilidade de terceiro e da desconsideração da pessoa jurídica

Marçal Justen Filho*

A vigência das Leis nº 12.846 (Lei Anticorrupção) e 13.105 (Novo Código de Processo Civil) tem despertado muitas discussões. Sob o ponto de vista teórico, há uma questão interessante. Relaciona-se com as figuras da desconsideração da pessoa jurídica e da responsabilidade societária por atos alheios.

A desconsideração da personalidade societária consiste no afastamento do regime jurídico próprio das entidades personificadas. Isso pode conduzir à atribuição da conduta diretamente a um sujeito distinto da pessoa jurídica. Em tais situações, existe uma solução no plano da autoria da conduta. Nesses casos de desconsideração, o ato será imputado (conjunta e concomitantemente) a um outro sujeito – o qual poderá por ele ser também responsabilizado como um efeito jurídico. As hipóteses comuns de desconsideração da personalidade societária resultam da utilização abusiva da pessoa jurídica. Admite-se a superação da distinção entre a pessoa jurídico e o sócio em virtude da utilização abusiva ou fraudulenta da pessoa jurídica.

A situação exposta não se confunde com os casos de responsabilização de uma pessoa jurídica por eventos praticados por outrem. Em tal hipótese, não se controverte sobre a autoria, mas o direito determina os efeitos de obrigações assumidas por um sujeito alcançarão a um terceiro. A responsabilização do terceiro não pressupõe, de modo necessário, a desconsideração da personalidade societária.

Um exemplo permite compreender a distinção. O art. 1.023 do Código Civil determina que, “ Se os bens da sociedade não lhe cobrirem as dívidas, respondem os sócios pelo saldo, na proporção em que participem das perdas sociais, salvo cláusula de responsabilidade solidária”. Essa regra não contempla a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade simples. Apenas estabelece que os sócios respondem pelas perdas da sociedade. Ou seja, o patrimônio pessoal dos sócios será vinculado à satisfação das dívidas de titularidade da sociedade simples. Não se discute a titularidade da dívida, que é inquestionavelmente da sociedade simples.

Existem pontos de contato entre as duas figuras da desconsideração da pessoa jurídica e da responsabilização de terceiros. A desconsideração da personalidade societária implica a atribuição de certo ato a um sujeito distinto daquele a quem o ato seria imputado. Isso pode produzir diversos efeitos. A depender das circunstâncias, poderá surgir a responsabilidade de terceiro como efeito da desconsideração. Mas daí não se segue a identificação entre ambos os institutos.

A desconsideração consiste numa reação à utilização abusiva ou fraudulenta de uma pessoa jurídica. Pode ser adotada para diversos fins, inclusive para o simples efeito de identificar o vício de atos jurídicos. Pode produzir a responsabilidade do sujeito como decorrência da imputação da autoria do ato praticado.

A responsabilidade de terceiro não envolve necessariamente a prática de fraude ou de abuso. Pode ser prevista como uma solução desvinculada de qualquer atuação fraudulenta ou abusiva. Aliás, a responsabilidade de um terceiro pode surgir inclusive como uma solução negocial inerente às atividades da vida social. Assim se passa com a garantia por dívida alheia. O fiador assume a responsabilidade pelo pagamento da dívida do afiançado. É verdade que o pressuposto da exigibilidade do pagamento pelo fiador consiste na ausência de pagamento pelo afiançado – o que configura, sob um certo ângulo, um ato ilícito. No entanto, a responsabilidade do fiador não é criada como uma consequência de práticas reprováveis.

A Lei nº 12.846 expressamente alberga a diferenciação entre extensão da responsabilidade de pessoa jurídica e desconsideração da personalidade societária. O art. 4º, § 2º determina que “ As sociedades controladoras, controladas, coligadas ou, no âmbito do respectivo contrato, as consorciadas serão solidariamente responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei, restringindo-se tal responsabilidade à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado”. Essa regra não se relaciona com a desconsideração da pessoa jurídica. Trata-se apenas de estender a terceiros os efeitos pecuniários do sancionamento imposto a outro sujeito.

Mas o art. 14 da mesma Lei nº 12.846 prevê que “ A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa”.

Então, a desconsideração societária é prevista formalmente na Lei nº 12.846 como uma solução jurídica distinta daquela estabelecida no art. 4º, § 2º, do mesmo diploma.

Tal distinção não é irrelevante, especialmente em vista da garantia constitucional da pessoalidade das penas (CF/88, art. 5º, XLV – “ nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”).

A sanção propriamente dita não pode ser imposta senão ao autor do ilícito. Por isso, a prática de atos de corrupção não pode acarretar a punição de outras empresas, ainda que vinculadas por relações societárias, àquela que praticou a infração. A própria Lei Anticorrupção reconhece esse limite, ao prever que a responsabilidade da terceira empresa será limitada à reparação integral do dano causado. Mas vai além do cabível ao estabelecer que também a penalidade pecuniária poderá ser exigida de um terceiro – o que infringe a Constituição.

Diversamente se passa na hipótese de desconsideração da pessoa jurídica, que envolve especificamente a determinação da autoria do ilícito. Justamente por isso, o art. 14 determina que, nas hipóteses de desconsideração da pessoa jurídica, todas as sanções pertinentes à autoria do ilícito serão impostas também aos sócios e administradores da sociedade que vierem a ser reconhecidos como titulares da conduta reprovável. Essa hipótese é muito distinta daquela contemplada no art. 4º, § 2º, da mesma Lei.

A diferenciação adquire ainda maior relevância jurídica em vista da vigência do novo CPC (Lei 13.105/2015). Nos arts. 133 a 137, está previsto o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. O afastamento dos efeitos da personificação societária deixou de se configurar como solução produzida pela avaliação do juiz sobre os fatos da causa. Tornou-se objeto de uma pretensão autônoma e específica, que se traduz no exercício do direito de ação. Para ser mais preciso, somente se admite a desconsideração como decorrência do exercício da jurisdição estatal. A desconsideração da personalidade societária exige o exercício do direito de ação, por meio do qual é formulado um pedido autônomo nesse sentido. Se o autor pretender obter a desconsideração, incumbe-lhe formular pedido específico nesse sentido, ao exercer a ação. Se a desconsideração for invocada pelo réu ou surgir como uma questão própria no curso do processo, será instaurado um incidente processual específico. Em tais casos, configurar-se-á uma ação incidente, acarretando inclusive a suspensão do processo principal.

Em face dessa inovação processual, a disciplina processual dos dois institutos tornou-se nítida. O enquadramento de certa situação na categoria da responsabilização de terceiro propicia um tratamento jurídico diverso daquela reservado para os casos de desconsideração da personalidade societária. Por essa razão, uma distinção que poderia ser considerada como meramente teórica tornou-se uma questão prática relevante.

*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.

Publicado por Marçal Justen Filho em 23.02.2016 às 15:34

Palestra TCU

Confira a palestra de Marçal Justen Filho no TCU:

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Publicado por Marçal Justen Filho em 22.02.2016 às 21:20

Coluna da Gazeta do Povo – Os (quase) noventa anos de Macunaíma

Marçal Justen Filho*

Mário de Andrade escreveu Macunaíma em 1926. A primeira edição apareceu apenas em 1928. Portanto, Macunaíma tem 90 anos, ou quase. O livro é um precursor do realismo fantástico latino-americano. No primeiro prefácio, escrito em dezembro de 1926, o autor colocava o problema em termos tão claros quanto chocantes. Dizia “… uma coisa me parece que certa: o brasileiro não tem caráter… E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não em vez entendo uma entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura, tanto no bem como no mal”. E acrescentava que “O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional… Dessa falta de caráter psicológico creio otimistamente, deriva a nossa falta de caráter moral”. (confira-se em Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, Ed. Especial – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 191/192).

Há uma passagem exemplar no livro. Macunaíma é enganado por um (mais) esperto e perde todo o dinheiro. Nesses dias, Macunaíma e os irmãos tinham tido um plano: ele se passaria por pianista, arranjaria uma pensão do Governo e iria para a Europa. Mas ele resolve fingir ser pintor, “ que é mais bonito”. Depois de ter perdido o dinheiro, Macunaíma descobre que não teria jeito de ir para a Europa:  Não vê que o Governo estava com mil vezes mil pintores já encaminhados pra mandar na pensão da Europa e Macunaíma ser nomeado era mas só no dia de São Nunca”. Macunaíma fica deprimido. “Macunaíma suava que suava dum lado pra outro enraivecido com a injustiça do Governo”. Essa não é uma descrição fantástica, mas muito próxima da nossa realidade. No Brasil, o sujeito tenta levar vantagem, perde tudo. Não se culpa por isso. Depois, quer obter um benefício absurdo e indevido. Não consegue. Mas o macunaíma se revolta é contra a injustiça do governo!

Lendo as notícias sobre a realidade brasileira, deparo-me com milhares de macunaímas. Em cargos federais, estaduais, municipais e distritais. Em empresas privadas grandes, pequenas ou minúsculas. São aquelas personagens que dão entrevistas e aparecem em público sem a menor vergonha, sem a menor consciência da própria responsabilidade pelos desacertos, pelos equívocos, pelas falcatruas. Governantes que tomaram decisões desastrosas, que (no mínimo) não reprimiram a corrupção, que lotearam a gestão entre aliados e não aliados comparecem perante o público para afirmar que a crise é resultado do desaquecimento da economia chinesa! Os confessadamente corruptores e corruptos transitam como uma espécie de heróis nacionais, sempre lamentando as injustiças que sofrem. Todos são realmente sinceros em sua ausência de avaliação sobre os próprios erros, sobre as próprias faltas, sobre a sua participação no desastre nacional. Nenhum deles experimenta um arrependimento moral, porque isso pressuporia reconhecer a própria falha. Todos se julgam sinceramente inocentes e todos se veem efetivamente como injustiçados. São todos herois sem nenhum caráter.

No fim, a vida perde a graça para Macunaíma, que se transforma em estrela. E dele todos se esquecem. Mário de Andrade não promoveu um final moralista para a sua história. Mas ele nunca pretendeu promover a defesa da canalhice. Seu livro é mais uma irônica descrição da realidade nacional do que um elogio à virtude da falta de virtude.

Nenhuma sociedade pode sobreviver sem valores, sem compromisso individual e coletivo com princípios transcendentes. É indispensável que todos nós sejamos moralistas. Não significa hipócritas, muito pelo contrário. Significa construirmos um caráter e afirmarmos um comprometimento com ele. Implica admitir que há certo e há errado. Que existe o certo e existe o fácil e que nem sempre os dois coincidem. Essa é a própria essência do direito, que existe para consagrar modelos de certo e errado. E para punir os infratores.

Mas nenhum direito será viável numa sociedade composta apenas ou preponderantemente por macunaímas. É muito ilusório imaginar que é suficiente reformar o Estado e o direito para assegurar a dignidade humana. Sem a reforma individual não há possibilidade de uma sociedade decente. Enquanto cada indivíduo não tomar consciência de que o problema começa com ele próprio não adianta Lava Jato, Impeachment, Reforma Política etc.

Macunaíma nunca teve a menor noção do dilema do prisioneiro. Noventa anos é um tempo razoável para meditar sobre isso e tentar uma solução. Com caráter e sem preguiça.

*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.

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Publicado por Marçal Justen Filho em 16.01.2016 às 21:18

Coluna da Gazeta do Povo – Simlaw

Marçal Justen Filho*

Um dos jogos de computador que despertou grande adesão chama-se “SimCity”. Foi criado em 1989 e, desde então, fez muito sucesso. O jogo tem por objetivo a construção de uma cidade pelo jogador. O programa permite, mas também impõe, que o jogador estabeleça o zoneamento urbano e produza o desenvolvimento da cidade. Mas existem circunstâncias que são alheias à vontade do jogador, de modo que as escolhas realizadas acarretam consequências inevitáveis. A cidade criada pelo jogador se desenvolve segundo certos parâmetros – muitos dos quais independem da vontade do criador. Portanto, uma decisão aparentemente irrelevante pode gerar consequências imprevistas. Aquilo que foi considerado como uma escolha irrelevante pode revelar-se como um grave erro de planejamento. O jogo é orientado a promover a qualidade de vida e a felicidade dos habitantes, sem ultrapassar os limites orçamentários.

Esse jogo permite inúmeras avaliações filosóficas, sob prismas muito diferentes. O jogador é investido de uma competência regulatória no mundo virtual, muito semelhante àquela desempenhada pela autoridade pública na vida real. É um jogo em que o jogador assume uma posição de onipotência. Permite ao sujeito levar avante a confusão entre a própria vontade e o destino do mundo.

Uma das características muito relevantes do jogo é a revelação de que “o poder pune” a quem o exercita de modo imprudente, negligente ou sem perícia. Quem tem o poder para gerar aquilo que bem lhe apraz arcará com a responsabilidade pelo equívocos em que incorrer.

Não é casual, aliás, que o nome do jogo remete à expressão “sin” – pecado, em inglês. O poder absoluto é também um caminho direto para falhar e para ser punido por isso. A cidade imaginária, criada na pura abstração de um indivíduo, é a cidade do pecado, porque permite o exercício unilateral de todos os desejos e impulsos de um criador humano.

Mas, neste texto, SimCity é apenas um pretexto para falar de outro fenômeno, que vem se instaurando na ordem jurídica. Vou denominá-lo de SIMLAW.

Quando iniciei minha formação jurídica, a PUC de São Paulo professava um imaginário kelsenianismo. Pretendia adotar a distinção rigorosa entre Direito e Ciência do Direito, tal como delineada por Hans Kelsen. Como se sabe, Kelsen construiu um modelo teórico que afirmava caber ao cientista do direito uma função puramente descritiva da ordem jurídica. Kelsen nunca negou a possibilidade de tomada de posição quanto ao direito: apenas negava que tal postura se enquadrasse na ciência do direito. A concepção kelseniana acabou abandonada, especialmente pela virada democrática ocorrida nos anos 1980.

O grande problema da proposta kelseniana é a impossibilidade de uma isenção absoluta do doutrinador do direito. Não se trata apenas do seu comprometimento com os valores fundamentais. Antes disso, é imperioso reconhecer que a circunstância pessoal influencia a condição humana. Portanto, o doutrinador sempre professa uma preferência pessoal, ainda quando disso não tiver consciência.

A partir especialmente da vigência da CF/88, difundiu-se a posição da validade do posicionamento pessoal do doutrinador no desenvolvimento de sua atividade específica. Reconheceu-se que o doutrinador é também um cidadão e que a sua atividade profissional deve refletir o compromisso com valores fundamentais.

O problema é que o direito apresenta, como um atributo intrínseco que lhe dá identidade, a heteronomia. O direito vale não porque o indivíduo reconheça a ordem jurídica como válida ou eticamente legítima. O direito se impõe coercitivamente sobre todos. A heteronomia significa que as normas jurídicas são dotadas de validade independente da vontade do destinatário.

Ora, a heteronomia do direito não comporta neutralização por meio da autonomia hermenêutica. Não é viável existir uma ordem jurídica em que cada indivíduo tenha a liberdade para determinar o sentido e o alcance da norma a ser aplicada. Nem que escolha um princípio para privilegiar, de modo a assegurar a prevalência da disciplina jurídica que bem lhe aprouver.

Apesar disso, a análise da situação existente na prática do Brasil de hoje evidencia uma espécie de SIMLAW. Cada operador do direito arroga-se o poder para construir uma ordem jurídica segundo as suas concepções pessoais, sem maiores considerações quanto ao direito real – ou melhor, o direito real passa a ser aquele pensado subjetivamente pelo doutrinador.

A norma fundamental kelseniana, nesse modelo, consiste em “eu reino nesse mundo”. Cada operador jurídico escolhe os princípios jurídicos que constituirão o alicerce de sua produção criativa, determina os sentidos que tais princípios apresentarão, seleciona as normas legais reputadas válidas, elimina a validade daquelas consideradas inválidas, adota interpretação conforme a própria vontade para as normas inconvenientes e instaura uma ordem jurídica à sua imagem e semelhança. Qualquer entendimento distinto, professado por outro operador, é desqualificado como incompatível com o direito. Com algum exagero, poderia ser dito que existem hoje no Brasil tantos direitos quantos sejam os operadores jurídicos.

É claro que SimCity é uma diversão legítima, que não merece qualquer reprovação ética. Mas o SIMLAW é algo totalmente distinto, porque o jogador se leva a sério. O doutrinador pensa-se como o grande Criador de uma nova ordem, aquele que veio ao mundo para eliminar as brumas e para instaurar o reino da Justiça.

O praticante do SIMLAW não exercita um juízo de autocrítica, não compreende nem mesmo que as suas concepções são essencialmente antidemocráticas. Porque a democracia implica a fixação de valores fundamentais e depende da formulação de escolhas normativas concretas por meio de processos intersubjetivos. A democracia exige a humildade de cada cidadão para aceitar a prevalência da opinião diversa, para submeter-se às decisões da maioria. Ainda que a democracia exija mecanismos contramajoritários, isso não implica o poder de cada doutrinador construir um modelo próprio de ordem jurídica. Portanto, o SIMLAW padece de um defeito inafastável, que é o seu cunho antidemocrático. O que não deixa de configurar um paradoxo: o praticante do SIMLAW costuma justificar as suas produções precisamente na intenção de promover os valores democráticos. É uma forma de ditadura fundada na pretensão da implantação compulsória e arbitrária de uma ordem democrática.

Há outra face, muito menos divertida, do SIMLAW. A multiplicação de soluções normativas, ao sabor da criatividade de cada operador jurídico, destrói a segurança jurídica. A defesa das soluções normativas distintas e diversas, variáveis de acordo com cada sujeito, acarreta a insegurança e a incerteza. Nos dias de hoje, ninguém consegue expor, com um mínimo de segurança, a disciplina normativa vigente no Brasil. A profusão de criações imaginárias destrói o direito do mundo real. É o paraíso do “achismo”: todos confundem o direito vigente com aquilo que eles “acham” que o direito é (ou que devia ser).

Quando os desatinos do jogador de SimCity conduzem ao impasse, o jogo termina e tem de ser recomeçado. Quando muito, o jogador perdeu o seu tempo – se é que o conceito de perda de tempo se aplica a jogos de videogame. Não se pode aludir a algum mal imposto aos habitantes virtuais de uma cidade imaginária.

Mas o SIMLAW é muito diferente. Porque a produção do operador jurídico afeta concretamente a vida das pessoas. Não se duvida que o praticante do SIMLAW tenha as melhores intenções. Mas as soluções equivocadas podem produzir efeitos materiais, no mundo real. Então, o resultado prático terá sido que as aventuras teóricas do operador do direito terão produzido um prejuízo real para a sociedade. E isso configura não apenas um problema social. É um pecado individual.

O que se pode esperar é que tudo isso seja apenas um movimento do pêndulo da História. Tomara que esses exageros da subjetividade sejam superados. Tomara que, no futuro, sobreviva apenas o jogo de videogame e que SIMLAW seja apenas uma expressão sem sentido.

*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.

Publicado por Marçal Justen Filho em 7.12.2015 às 21:07

Coluna da Gazeta do Povo – Seis indícios de corrupção nas contratações administrativas

Marçal Justen Filho*

As reiteradas notícias sobre corrupção em contratações administrativas não conduziram à eliminação de práticas reprováveis no setor. Ao que parece, as providências repressivas não têm sido suficientes para colocar um ponto final nesses desvios.

Seria uma ingenuidade incompatível com a realidade dos fatos supor que esses abusos somente ocorrem em contratações promovidas perante determinados órgãos ou entidades. Por isso, é necessária atenção e exame das circunstâncias dos casos concretos para identificar os abusos – que, como é evidente, são sempre disfarçados em soluções orientadas à promover o “bem público”.

Adiante estão arroladas situações que usualmente envolvem práticas abusivas. É evidente que não se trata de presunção absoluta, mas os eventos abaixo narrados são muito comumente relacionados com violação à ordem jurídica.

1) Requisitos de habilitação excessivos, não justificados de modo claro e simples: O modo mais simples de direcionar indevidamente uma licitação consiste em adotar requisitos de habilitação que comprometam a universalidade da disputa. Isso não equivale a reconhecer a invalidade de requisitos de habilitação severos. Há casos em que é necessário exigir que o licitante comprove experiência anterior diferenciada. Mas isso somente é admissível quando o objeto do contrato for efetivamente complexo, difícil de ser executado. Em tais casos, a necessidade de requisitos de habilitação severos é evidente e pode ser justificada facilmente. Sempre que o objeto for relativamente simples ou envolver atividades destituídas de complexidade, a exigência de requisitos de participação severos é um forte indício de práticas reprováveis. Em tais casos, caberá à Administração expor as razões da exigência, o que envolverá raciocínio técnico. A recusa de justificativa, a dificuldade em fazê-lo ou a adoção de cláusulas genéricas (“supremacia do interesse publico”) são fortíssimos indícios de desvios reprováveis.

2) Exigências contratuais excessivas, desnecessárias para a obtenção de um resultado satisfatório: Raciocínio similar se verifica nos casos em que o edital contempla requisitos contratuais desnecessários. São aqueles casos, por exemplo, de execução da prestação contratual em prazos exíguos ou em condições muito problemáticas, sem que isso seja necessário para satisfazer as necessidades da Administração. Essa hipótese compreende, inclusive, critérios técnicos de julgamento. Um exemplo típico é a previsão de classificação mais vantajosa para a proposta que oferecer a entrega da prestação no mesmo dia da formalização do contrato. Essa solução, na maioria das vezes, é inútil, eis que é indiferente para a Administração receber o objeto no mesmo dia da assinatura do contrato.

3) Realização de diligências “anômalas”, sem observância de publicidade: uma prática altamente reprovável é a realização pela Administração de diligências “estranhas”, “incomuns” e excepcionais, no curso da licitação, sem prévia comunicação às parte. Até se pode admitir que, em situações muito peculiares, a divulgação da realização da diligência possa comprometer a sua eficácia. Mas a regra é distinta. Muito menos cabível é a realização de diligências sem o acompanhamento e o controle das partes. Um caso evidente é a diligência secreta que conduz à conclusão de que o licitante preenche requisitos de participação objeto de impugnação por outra parte. A conduta administrativa, que impede que o impugnante acompanhe a diligência, é altamente suspeita.

4) A realização de “testes” secretos, que conduzem à reprovação da prestação oferecida ou executada por um dos licitantes: é evidente que a prestação desconforme com as exigências do edital deve ser reprovada. Mas não é incomum que a recusa do particular em concordar com exigências ilícitas resulte na reprovação do produto por ele ofertado. Em tais casos, a Administração providencia um teste, usualmente aplicado sem observância do princípio da publicidade, para considerar que o objeto oferecido apresenta defeitos. Como decorrência, a proposta do licitante é desclassificada. Essa prática se consuma muito mais comumente depois da conclusão do certame. O licitante vencedor é convocado para ofertar vantagens indevidas a algum agente público. Em caso de recusa, produz-se um teste a destempo e se promove a sua exclusão.

5) Desfazimento do certame mediante invocação de razões implausíveis: outra alternativa para retaliação contra o licitante que se recusa a conceder vantagens indevidas é o desfazimento do certame. Pode ocorrer ou a anulação ou a revogação. Em ambos os casos, são referidas razões pouco usuais, que envolvem fatos controvertidos ou destituídos de consistência.

6) A recusa pela Administração do cumprimento fiel do contrato, impondo sérios danos ao particular: um caso emblemático é a ausência de adimplemento do contrato pela Administração, depois de o particular ter executado aquilo que lhe cabia. Em muitas hipóteses, a Administração nem mesmo invoca alguma razão jurídica. Pura e simplesmente deixa de executar a prestação que lhe cabe. Em outros casos, atrasa o recebimento formal do objeto, embora passe a dele usufruir imediatamente. Enfim, há casos em que a Administração alude ao art. 78, inc. XV, da Lei 8.666 (que prevê a possibilidade de rescisão do contrato em caso de atraso superior a noventa dias), tal como se o prazo contratual fosse irrelevante. Em todas essas situações, é muito provável existir uma tentativa de constranger o particular a oferecer vantagens indevidas para agentes públicos.

A Administração Pública detém uma pluralidade de competências anômalas, que lhe são atribuídas para melhor satisfazer os interesses coletivos. Não é admissível que tais poderes sejam utilizados para viabilizar a corrupção. O exercício desses poderes anômalos somente é válido quando realizado de modo transparente, com observância do princípio da publicidade e mediante a demonstração do inequívoco atendimento aos interesses públicos. Condutas sigilosas, destituídas de fundamentação satisfatória, consumadas de modo incompatível com as práticas usuais e sem respeito ao princípio da boa-fé devem ser reprovadas e invalidadas de modo imediato, especialmente porque há grande probabilidade de práticas relacionadas à corrupção.

*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.

Publicado por Marçal Justen Filho em 6.11.2015 às 20:55

Coluna da Gazeta do Povo – Mas temos muito ainda a falar sobre licitação

Marçal Justen Filho*

O caderno Justiça e Direito, de outubro deste ano, trouxe um interessante artigo de Egon Bockmann Moreira ( “Não me fale da 8.666!”), que permite um diálogo indispensável.

De fato, a Lei 8.666 representa hoje um obstáculo ao desenvolvimento nacional. É necessário substituí-la por um modelo mais adequado, com uma renovação de paradigmas.

Egon defende a necessidade de “esquecermos” a Lei 8.666 e lembra a existência das outras leis de licitação (Pregão, RDC, por exemplo). E se opõe à aplicação subsidiária da Lei 8.666 aos outros modelos licitatórios.

Ele tem razão, sob um ponto de vista. A disputa sobre a Lei 8.666 produz uma espécie de paralisia, que impede o desenvolvimento de muitas contratações. A preocupação em discutir os defeitos da 8.666 acaba se sobrepondo à adoção de providências práticas para resolver os problemas reais. Produz-se uma espécie de paralisia administrativa, que é justificada pela invocação ao defeitos (reais ou imaginários) da 8.666. A infindável discussão sobre a 8.666 torna-se o centro das atividades administrativas, sem nenhuma eficácia prática.

Mas isso não significa que seja possível esquecer a Lei 8.666. O primeiro problema é que a licitação tem dois núcleos essenciais: um é a habilitação e outro é o julgamento das propostas. A Lei 8.666 continua a disciplinar a habilitação em todas as licitações. Nenhuma das leis posteriores sobre licitação dispôs sobre a habilitação. Portanto, em toda e qualquer licitação, incidirá a Lei 8.666 na questão da habilitação. Isso envolve um efeito acessório inafastável, relacionado com a identificação de defeitos sanáveis e insanáveis. Por isso, não tem jeito de esquecer a Lei 8.666.

Mas o problema principal é que não adianta esquecer a Lei 8.666. As outras leis de licitação são quase tão ruins quanto ela. Seguem a mesma sistemática, com alguns aperfeiçoamentos pontuais. Vejam o pregão, cantado em prosa e verso por ter permitido grande economia para os cofres públicos. Ninguém fala que o pregão beneficia enormemente as grandes empresas, que têm condições de praticar preços muito mais reduzidos. O pregão destruiu as pequenas e médias empresas – a ponto de o governo ter sido obrigado a criar benefícios diferenciados para as micro e pequenas empresas. Ou seja, os ganhos econômicos obtidos com o pregão são parcialmente compensados com os incentivos assegurados às micro e pequenas empresas.

Mas o problema essencial do pregão é a consagração absoluta da chamada seleção adversa. O poder público não conhece aquilo que compra e o critério de escolha é o preço mais reduzido possível. Isso produz um incentivo ao mercado oferecer produtos imprestáveis por preço reduzido: o pregão conduz, em parte relevante dos casos, o governo a pagar pouco por algo que não vale nada. A redução do preço no pregão é acompanhada da redução da qualidade. A margem de lucro do licitante continua sempre a mesma. Não que o pregão não tenha trazido benefícios. É claro que trouxe. Mas a estruturação adotada permite desvios insuportáveis.

Críticas semelhantes podem ser realizadas a todas as leis de licitação vigentes. Todas são ruins porque não preveem mecanismos de participação, discussão e disputa efetiva entre os licitantes.

Há uma única alternativa para resolver o problema da licitação: ampliar a competição. Isso envolve não apenas alterar radicalmente a disciplina da habilitação (que se encontra onde, mesmo? Na 8.666). É necessário consagrar o chamado “diálogo competitivo”, permitindo que os competidores controlem-se entre si. Nessa linha, os recursos e as impugnações dos competidores não são um problema, são a solução. As críticas da Administração aos recursos e impugnações refletem a postura equivocada em face da sociedade.

Por isso, o recurso administrativo é tão importante. É uma oportunidade para os particulares demonstrarem que a proposta escolhida pela Administração não é a mais vantajosa. São um instrumento para evidenciar equívocos praticados. O problema é que a Administração parece tomar o recurso como um desrespeito, uma espécie de insulto: como o particular ousa insurgir-se contra a decisão da autoridade? Ao ver da Administração, o recorrente deveria ser punido por sua ousadia.

É necessário superar a arrogância estatal. Especialmente em temas econômicos, o governo sabe muito menos do que o particular. Ou se instaura uma colaboração efetiva entre o Estado e os particulares ou o resultado continuará a ser a permanente repetição do fracasso. Então, falar ou não falar da 8.666 não fará diferença.

*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.

Publicado por Marçal Justen Filho em 9.10.2015 às 20:49

Coluna da Gazeta do Povo – A separação de poderes como um processo político em evolução*

Marçal Justen Filho**

A concepção tradicional da separação de poderes refletiu uma visão característica do final da Idade Média, que diferenciava três funções estatais básicas: administrar, produzir leis e decidir conflitos. Essa concepção foi incorporada à tradição não apenas da filosofia, mas dos diversos Estados, de tal modo que todos os Estados democráticos adotaram um esquema de separação de poderes que se vincula a tais funções e que se reflete na existência dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Essa versão vulgar da separação de poderes, no entanto, é simplista, já que a as manifestações do poder político são muito mais complexas. Isso é comprovado na nossa vida diária. Todos aqueles que estejam vinculados a uma função estatal têm diante de si permanentemente um questionamento sobre a natureza e sobre os limites das diversas funções. E todos os cidadãos se deparam com controvérsias, especialmente nos pontos em que as diferentes funções e os diferentes poderes estabelecem relação uns com os outros.

Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que nenhuma teoria de separação de poderes é única ou universal. Cada país, cada nação desenvolveu a sua própria concepção de separação de poderes. Assim, por exemplo, o que no Brasil é considerado função jurisdicional, privativa do Poder Judiciário, não o é necessariamente nos Estados Unidos, muito embora lá também existam os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O mesmo se põe relativamente a todos os poderes e a todas as funções. Cada país constrói o seu esquema de separação de poderes a partir das suas realidades, características e necessidades. Se examinarmos cada país do mundo, teremos um modelo próprio e diferenciado de separação de poderes e de separação de funções. O que significa, portanto, que seria uma tolice imaginar que há uma teoria pronta, acabada e única sobre separação de poderes.

Por outro lado, a própria evolução democrática acabou criando estruturas estatais até então desconhecidas. No Brasil, a Constituição de 1988 inaugurou um regime em que existem cinco poderes. Ao lado de Executivo, Legislativo e Judiciário, é necessário acrescentar o Tribunal de Contas e o Ministério Público. Essas entidades têm estruturas, funções e garantias próprias, que as integram à divisão de poderes no Brasil com uma posição exatamente idêntica à dos demais poderes. Não é possível que suas funções sejam apropriadas por qualquer outro poder. Nós podemos negar a sua autonomia apenas por tradição e somente porque estamos acostumados a aludir à tripartição dos poderes. Porque era assim que pensávamos há vinte, trinta, cinquenta, cem anos. No entanto, os critérios que nos levam a reconhecer a existência dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário nos impõem, necessariamente, a reconhecer que nem Tribunal de Contas nem Ministério Público estão rigorosamente enquadrados dentro desse esquema.

E as agências reguladoras? Onde entram as agências reguladoras? Que têm uma função, como dizem os especialistas, quase jurisdicional, quase legislativa e quase administrativa. Elas fazem algo semelhante ao Judiciário, algo semelhante ao Legislativo e algo semelhante ao Executivo. Quando vier a ser afirmada a autonomia das agências, a tendência é que elas se ponham como titulares de funções distintas daquelas consagradas pela tripartição de poderes.

E o Ombudsman? Parece inevitável que toda Nação democrática institua a figura do ombudsman, que tende a ser uma autoridade independente eleita diretamente pelo povo para controlar as funções dos demais poderes. Onde entra o Ombudsman na teoria na tripartição dos poderes? Em lugar nenhum. E se trata de uma conquista necessária à democracia. Portanto, nós nos deparamos com uma crise na separação dos poderes que nada mais é do que uma decorrência da pretensão humana a simplificar o mundo e a eliminar a complexidade dos fatos tal como eles existem.

Essa crise adquire uma dimensão mais complexa porque, ao longo do século XX, houve uma absorção pelo Estado de funções que eram tipicamente privadas ou, mesmo, inexistentes até então. Quando a separação de poderes foi implementada, ao longo do século XIX, a partir de experiências mais ou menos comuns do mundo ocidental, nós vivíamos uma concepção de Estado não intervencionista, a quem incumbia exclusivamente uma função de realizar a segurança, de proteção da propriedade privada e da liberdade. Era o Estado clássico de Direito, ao qual não competiam funções de cunho promocional.

O século XX trouxe uma nova dimensão da atuação estatal, que é não apenas de preservar a realidade, mas de modificá-la de modo a assegurar a realização de direitos fundamentais, indispensáveis à dignidade humana. Assim, a evolução que se verificou ao longo do século XX resultou numa ampliação significativa do Estado. Foram incorporadas novas funções públicas. O Estado passou a desempenhar ele mesmo alguns serviços, relacionados diretamente à satisfação dos direitos fundamentais das pessoas. E passou a intervir direta e indiretamente na economia.

Essas funções não eram imagináveis por Montesquieu, não cabiam na Constituição francesa, ou na Constituição americana, ou na Constituição republicana de 1891. Então, como enquadrá-las na clássica tripartição de poderes? A ausência de alternativa teve como resultado prático a sua inclusão no âmbito do Poder Executivo, o que conduziu à sua hipertrofia.

Mas o Poder Legislativo também sofre as consequências desse processo. A evolução da concepção democrática conduziu a que o Poder Legislativo assumisse uma posição diversa. Em muitos casos se alude à crise do Poder Legislativo. É interessante observar que, também aí, a crise é muito mais o produto de uma recusa a compreender a realidade tal como ela é, do que propriamente um defeito da realidade.

Massimo Severo Giannini (talvez o maior administrativista italiano) formulou uma concepção que, num primeiro momento, foi objeto de enorme entusiasmo, mas que se transformou numa espécie de decepção ao final de sua vida. Ele observava que houve uma diferença fundamental na organização política dos países europeus do século XIX para o século XX. Até o século XIX existia uma Democracia meramente formal, já que não havia sufrágio universal. Votavam apenas os homens e os homens ricos. Havia um critério censitário para a condição de eleitor. Como decorrência, os Parlamentos eram formados por representantes de um estrato único da sociedade (homens, proprietários, e capitalistas). Vigorava, então, o Estado monoclasse.

O processo de universalização do voto inerente à Democracia transformou o indivíduo em cidadão. Reconheceu-se que todo ser humano, simplesmente como tal, tem a aptidão para ser cidadão partícipe do processo político e, tendencialmente, eleitor. Qual o resultado disso sobre os Parlamentos? Eles passaram a refletir de um modo muito intenso a heterogeneidade da sociedade. Massimo Severo Giannini aludiu, então, ao Estado pluriclasse. Ele reconhecia essa alteração como um enriquecimento democrático, eis que o Parlamento passaria a representar de modo mais preciso e exato todas as variações da sociedade.

No entanto, sendo italiano e vivendo, afinal, a realidade italiana, Massimo Severo Giannini atingiu no final da vida uma dimensão de ceticismo, reconhecendo que o Parlamento não conseguia cumprir as próprias funções. E por quê? Porque a pluralidade de conflitos de interesses da sociedade passaram a se refletir ao interno do Parlamento. As maiorias tornaram-se totalmente passageiras e efêmeras. Os pleitos deixaram de apresentar uniformidade e continuidade. Como decorrência, aprovar uma lei se transformou em uma batalha quase impossível de ser resolvida.

Além disso, imaginando-se que a função fundamental do Poder Legislativo é fazer leis, cada vez o Poder Legislativo faz menos leis, que são cada vez mais genéricas e imprecisas. As funções normativas vão escapando do Poder Legislativo em todos os países do mundo. Passam para as agências reguladoras, são assumidas pelo Executivo. O próprio Poder Judiciário assume poderes normativos. Veja-se que, no Brasil, um tribunal superior pode adotar soluções normativas próprias de lei, em casos de inconstitucionalidade por omissão.

Também vai ficando cada vez mais reduzida a amplitude dos temas sobre os quais legisla o Poder Legislativo, reservando-se a ele a tomada de grandes decisões, de decisões essenciais.

Isso não se constitui propriamente em um problema, um defeito da realidade, mas em uma característica intrínseca da democracia. Trata-se de uma característica decorrente da legitimidade dos Parlamentos. O Poder Legislativo tem todas essas dificuldades porque a sociedade apresenta todas essas dificuldades.

Mas é essencial tomar em vista que o Poder Legislativo é aquele que traduz a relação direta entre o Estado e o Povo. O Poder Judiciário, o Ministério Público, o Tribunal de Contas, todos são investidos indiretamente pelo Povo. Mas a sua função não é vocalizar as demandas da população. É o Poder Legislativo que tem a função primordial de estabelecer um canal de comunicação entre o Estado e o cidadão. O Poder Legislativo passa a existir, portanto, muito mais como um meio para manifestação das vontades populares em face do Estado do que para produzir leis. E incumbe a ele, Poder Legislativo, a ampliação dessa função de representatividade democrática, inclusive para evitar que a insatisfação da população em face do Estado conduza a levar as diversas questões ao Poder Judiciário.

Hoje em dia, quando alguém tem uma insatisfação em face do Estado, faz o quê? “Entra” com uma ação, ou o Ministério Público ajuíza uma ação civil pública. O Poder Judiciário tornou-se o grande canal de comunicação entre o povo e o Estado. Passou a ser o destinatário da insatisfação popular e o resultado prático que vemos é a situação de quase inviabilidade do exercício das suas funções. O Poder Judiciário se transformou num Poder que não tem como cumprir as suas funções, por mais que o deseje. Porque além dos conflitos individuais, o Poder Judiciário tem que resolver questões de política pública. Vai-se ao Supremo Tribunal para discutir a política pública que deve ser aplicada para o fornecimento de medicamentos, para a melhoria da educação e assim por diante. Logo, o Poder Judiciário padece de um mesmo problema que assolou o Ministério Público, que é a enorme ampliação de competências, e a inviabilidade de que sejam executadas todas elas.

Concluo observando que temos diante de nós uma espécie de exaurimento dos modelos teóricos, e isso produz uma enorme insatisfação. Cada vez que temos a oportunidade de abrir um livro que fala de teoria da separação dos poderes, vêm os questionamentos: quem foi que escreveu isso? Onde essa pessoa estava? Não no mesmo mundo em que eu. Eu posso até ler e repetir isso para passar no concurso, mas isso não é o mundo real. O mundo que nós vivemos não é esse porque a teoria foi ultrapassada pela prática, a teoria reflete o passado, a teoria reflete outros povos. Resta reconhecer que não há resposta pronta e acabada, que a teoria da separação de poderes é um processo político em evolução, e que nós estamos construindo essa teoria todos os dias, de acordo com as circunstâncias jurídicas e a realidade brasileira.

*Texto básico exposto por ocasião de conferência realizada em 14/9/2015, por ocasião da instauração da Escola do Legislativo da Assembleia Legislativa do Estado do Paraná.

**Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.

Publicado por Marçal Justen Filho em 14.08.2015 às 20:46

Coluna da Gazeta do Povo – A crise do “Direito Administrativo do Espetáculo”

Marçal Justen Filho*

Em 2008, escrevi um texto sobre o “Direito Administrativo do Espetáculo”, que foi publicado numa coletânea organizada por Floriano de Azevedo Marques Neto e Alexandre Santos de Aragão. O texto será republicado, numa versão atualizada, a propósito de uma nova edição dessa obra. É interessante cotejar as realidades do passado e do presente sob a ótica nele adotada. E vale a pena realizar uma síntese sobre o assunto.

Alguns pensadores apontaram o fenômeno da “espetacularização” da sociedade e do Estado. O “Espetáculo” consiste numa manifestação de entretenimento. As diversas dimensões da realidade são transformadas em entretenimento na nossa sociedade. Desde os eventos positivos aos mais dramáticos. A filmagem ao vivo de seres humanos e a sua divulgação imediata na internet é uma evidência muito clara disso. Lembre-se o que se passou há pouco nos EUA, onde uma repórter e um cinegrafista foram alvejados durante uma entrevista ao vivo. O mundo todo assistiu. É assim que realidade e imaginação se confundem num Espetáculo que conduz à passividade. A vida se transforma num videogame.

O Estado incorporou a concepção do Espetáculo. O governante se transformou num astro, que é promovido por meio das mesmas técnicas adotadas para cervejas e filmes. É difícil diferenciar a atividade administrativa cotidiana e a novela diária. A sociedade é transformada em uma grande Plateia, que assiste extasiada às aventuras dos governantes.

Surge, então, o “Direito Administrativo do Espetáculo”, um conjunto de manifestações estatais destinadas a criar imagens de progresso, dedicação dos governantes e promoção do interesse público. A atividade administrativa de Espetáculo consiste essencialmente na demonstração pública de grande azáfama governativa. Os administradores públicos produzem permanente informação à Plateia relativamente às ações imaginárias que desenvolvem.

Essa atividade administrativa Espetacular se produz por meio da utilização de conceitos aptos a manter o espectador na condição de um elemento passivo, ocupado em acompanhar a proliferação de notícias políticas e jurídicas. Trata-se de prender a atenção dos indivíduos comuns, neutralizando o seu senso crítico e impedindo qualquer comparação entre a ação administrativa e o mundo real não imaginário.

O Direito Administrativo do Espetáculo é um instrumento essencial para o Estado do Espetáculo, eis que as ações imaginárias do governante envolvem a utilização de conceitos e expressões técnico-científicas, que são recepcionados pela Plateia com um misto de desconhecimento e espanto.

Essa instrumentalização do direito apresenta duas dimensões inconfundíveis, mas entre si relacionadas. Existe uma dimensão de entretenimento propriamente dito, em que a utilização de figuras jurídicas produz efeitos puramente imaginários na Plateia. Por exemplo, a afirmativa de que determinada decisão envolve a defesa da “soberania” do país desencadeia um conjunto de emoções e imagens individuais e coletivas. O indivíduo vincula aquela decisão ao universo imaginário heroico e pode, em situações extremas, dispor-se inclusive a doar a própria vida para defesa das ações do governante.

E há uma outra dimensão a ser considerada, que se relaciona à imunização das escolhas e decisões do governante ao controle direto da Plateia. O expectador, que não domina a argumentação jurídica, aceita a decisão que invoca a defesa da soberania, especialmente pelas razões jurídicas que se afiguram a ele como incompreensíveis.

É verdade que não se nega à Plateia o exercício de opiniões – faz parte do Espetáculo a formulação de opiniões por parte do espectador. Mas não se admite que o espectador assuma posição ativa. A intervenção direta do espectador, não prevista e não desejada, atrapalha o desenvolvimento da atuação espetacular governativa. Logo, a utilização do aparato jurídico destina-se também a manter a Plateia como tal. É necessário gerar a ilusão de que o governante exercita toda a sua atuação no interesse da Plateia e que as decisões adotadas são as mais corretas e perfeitas. Como dito, a Plateia deve imaginar que o seu governante é o melhor possível.

O mundo real encarregou-se de demonstrar, no entanto, a existência de limites para a prevalência do mundo imaginário produzido na dimensão estatal. A Plateia pode ser mantida entretida, mas apenas se e enquanto o Estado desenvolver atuação dotada de um mínimo de efetividade para o enfrentamento das necessidades de sobrevivência dos indivíduos.

A experiência dos fatos evidenciou que o distanciamento entre a realidade e o discurso do governante gera o crescimento da insatisfação da população, o que produz o rompimento da proposta do Espetáculo.

Um dos fatores que conduzem à percepção pelo público em geral da situação insatisfatória reside no crescimento contínuo dos gastos públicos. A elevação das despesas governamentais exige a ampliação da carga tributária, a alienação de bens e direitos estatais e o endividamento do Estado perante o sistema financeiro nacional e estrangeiro. Em médio prazo, isso amplia os riscos de descontrole inflacionário. Desencadeia a constatação pela Plateia de uma situação desagradável, de empobrecimento econômico individual e coletivo.

O indivíduo percebe que uma parcela relevante de seu patrimônio e das riquezas da Nação é transferida para o Estado sem que a isso corresponda a possibilidade da fruição de vantagens e benefícios. O discurso do “progresso”, da “melhoria”, do “resgate de direitos” se torna quase uma ofensa em face da situação concreta do indivíduo.

Um aspecto específico da problemática se relaciona com a incapacidade de o Estado desempenhar o monopólio da violência. Isso se passa nos casos em que permanecem bolsões privados titulares da capacidade de promovê-la. Essas organizações privadas se superpõem ao Estado, submetendo parcelas relevantes da população à existência de uma espécie de “organização política paralela”. Em termos práticos, ocorre a ausência de prevalência de valores jurídicos. Mais precisamente, prevalece o interesse puramente egoísta das organizações criminosas.

A questão é ainda mais grave quando o Estado não assegura o monopólio da violência segundo o princípio da proporcionalidade. Se a violência privada das organizações criminosas é acompanhada da violência injusta dos organismos estatais, surge uma situação insuportável para os indivíduos. O resultado prático é a submissão do indivíduo aos desmandos tanto de particulares como de agentes estatais. A violência se traduz na perda de vidas, no sofrimento físico, na redução patrimonial, na ausência de tranquilidade.

O medo individual e coletivo é incompatível com a aceitação de versões idílicas sobre as virtudes puramente idealizadas e retóricas de um governo espetacular.

As circunstâncias fáticas se sobrepõem ao discurso formal dos ocupantes do poder. Não se trata da eliminação do Espetáculo, o qual continua a ser promovido de modo contínuo. O que se passa é que o Espetáculo produz efeitos mais intensos apenas para parcelas reduzidas da população. A Sociedade do Espetáculo continua a existir, mas sem que o Estado consiga inserir a sua própria produção no cenário. A população em geral se reconhece como marginalizada em face do Espetáculo oficial.

A questão da crise do Estado do Espetáculo se relaciona também com o surgimento de mecanismos privados muito mais eficientes para a criação de realidades virtuais e para a generalização do entretenimento. A contraposição entre o Estado de Espetáculo e a Sociedade do Espetáculo adquire contornos diferenciados em vista do surgimento de recursos tecnológicos que asseguram a comunicação de massa e que compreendem, de modo especial, a chamada “mídia social”.

Os recursos da internet e os novos aplicativos destinados à telefonia móvel permitem formas de interconexão inviáveis no passado. De modo genérico, essas soluções técnicas escapam do controle estatal e independem de infraestruturas complexas ou onerosas. Um indivíduo comum dispõe de condições de estabelecer comunicação com um número indeterminado de sujeitos, sem que tal atividade se subordine ao controle estatal.

O acesso permanente e ilimitado à informação dificulta a produção de versões estatais conflitantes com os fatos disponíveis na rede de informações. O Espetáculo estatal necessita ser plausível e a contradição com as notícias divulgadas conduz a seu descrédito. Torna-se cada vez menos possível ao Estado levar a população a acreditar numa versão absolutamente desconectada da realidade.

Um dos efeitos desse novo paradigma de conduta social é a obsolescência das soluções tradicionais de organização popular e de representação da vontade do Povo. Os partidos políticos e os órgãos estatais não são identificados pela sociedade como a via para a manifestação dos pleitos e para a exteriorização da soberania popular. Produz-se uma crise de legitimidade dos órgãos públicos – o que incrementa a dificuldade na produção do Espetáculo oficial.

Esse é o cenário brasileiro, cujo diagnóstico é menos complexo do que a formulação de propostas para o futuro. A recusa da população em manter uma posição passiva pode resultar em soluções práticas muito distintas. Seja lá o que vier a ocorrer, uma coisa é certa: o Espetáculo oficial terá de ceder à ruptura da passividade e à participação efetiva da Plateia. O Espetáculo será comandado pela Plateia. Ou seria isso uma simples e doce ilusão, tipo “reality show”, “melhor chefe de cozinha” e por aí afora?

*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.

Publicado por Marçal Justen Filho em 6.05.2015 às 20:39

Coluna da Gazeta do Povo – Corrupção e contratação administrativa: a necessidade de reformulação do modelo jurídico brasileiro

Marçal Justen Filho*

A situação brasileira atual, com a revelação dos escândalos de corrupção, tem sido enfrentada com a proposta de “mais do mesmo”. Não existem propostas de soluções adequadas. Talvez porque não há um diagnóstico satisfatório dos problemas enfrentados.

A corrupção é um desvio que acompanha a organização do poder político. Na tradição ocidental, consagrou-se que “o poder corrompe o ser humano”. A separação de poderes conduz a uma função administrativa, exercitada pelos diversos órgãos estatais.

Ocorre que a função administrativa tem sido concebida como uma manifestação da supremacia do Estado em face dos particulares. Os poderes administrativos são exercitados para promover o interesse público, o que justifica o sacrifício de direitos e interesses dos particulares. Esse modelo se baseia na ideia de que “o ser humano corrompe o poder” (Ulisses Guimarães). O modelo do Direito Administrativo resultante se funda no ideal de que o Bem Comum é alcançado por seres humanos dotados de virtudes extraordinárias – incorruptíveis, portanto.

Nesse concepção, os desvios ocorridos na realidade são interpretados como resultantes de falhas de caráter dos agentes públicos e dos particulares ou defeitos na ideologia do partido político. As soluções cogitadas são a substituição dos governantes, a exacerbação das punições e a substituição da Lei de Licitações. Todas essas providências já foram tentadas no passado, não deram resultado e possivelmente não produzirão a alteração do atual cenário.

É necessário um governo de leis, não de seres humanos. Todos os seres humanos são dotados de virtudes e de defeitos. Os fins de interesse comum devem ser realizados pela virtude do direito, não dos homens. Não é suportável subordinar o destino da Nação às virtudes (e aos defeitos) dos indivíduos governantes. Justamente por isso, o despotismo esclarecido é um regime insuportável. Nenhum governante pode ser autorizado a consagrar a sua própria vontade como critério fundamental das decisões políticas. O exercício das competências públicas deve ser submetido a controles que impeçam a imposição da vontade individual.

Também quando se trata de corrupção, a melhor solução é a prevenção. Nenhuma sanção concebida pelo direito (nem a pena de morte) foi suficiente para eliminar a ilicitude. A severidade da sanção é insuficiente para eliminar a opção individual pelo ilícito. Ou seja, é indispensável adotar mecanismos que impeçam a oportunidade para a corrupção, sem imaginar que sanções severas bastariam.

Depois, não há corrupção na esfera pública sem a participação de agente público. É claro que a corrupção é uma atuação bilateral. Mas a atuação isolada do agente privado é insuficiente para a corrupção. Portanto e independentemente de mecanismos de prevenção e repressão dos particulares, é essencial a adoção de mecanismos de prevenção da corrupção no âmbito administrativo.

A substituição da lei de licitações é uma providência muito limitada para prevenir a corrupção. A ausência de corrupção na licitação não significa ausência de corrução durante o contrato. O máximo resultado propiciado pela licitação é a obtenção da proposta mais vantajosa. Mas o acordo reprovável entre agente público e agente privado supera a eficácia da licitação. Afinal, a corrupção se consuma durante a execução do contrato.

Isso não significa negar a necessidade da reforma das licitações. Isso não pode envolver, no entanto, a ampliação ainda maior da sua complexidade. Quanto mais complexa a licitação, tanto menor é o número de interessados. E isso torna inviável que a própria Administração consiga realizar a licitação. Mas o pior é que a ampliação da complexidade da licitação não produz contratações melhores. Não se pode ignorar a questão da assimetria de conhecimentos. O setor privado detém conhecimento mais preciso e aprofundado sobre a sua atividade do que o poder público. Nenhuma providência permitirá que o Estado seja titular de conhecimento equivalente ao do particular. O uso de critérios formais e padronizados conduz à seleção adversa, que consiste em realizar a pior escolha possível: pagar muito por um produto de qualidade inferior. A única alternativa é ampliar a competição e recorrer ao diálogo competitivo, em que os particulares têm a oportunidade para apontar as virtudes dos próprios produtos e os defeitos das ofertas dos competidores. Quanto mais a licitação se afastar dos modelos de negociação privada, tanto maior é o risco de contratação desastrosa. Isso não tem a ver com a corrupção propriamente dita, mas com o desperdício puro e simples dos recursos públicos.

A corrupção decorre das oportunidades ofertadas pelo direito para escolhas prepotentes do agente público. Sempre que o agente estatal dispuser de competência para escolher entre mais de uma alternativa, alguma das quais é favorável ou desfavorável ao particular, surgirá potencial oportunidade para a corrupção. E o direito administrativo brasileiro é repleto dessas previsões. Isso tem a ver com as condições anômalas da execução do contrato. É o chamado regime das prerrogativas extraordinárias, que contemplam poderes unilaterais para o agente realizar uma escolha. Em tese, tal escolha deve ser norteada pelo Bem Comum. Na prática, é uma situação de poder que pode ser utilizada para a corrupção. Existem cinco manifestações principais dessas prerrogativas.

A primeira é a escolha entre contratar e não contratar. Segundo a doutrina tradicional, o vencedor da licitação não tem direito adquirido a ser contratado. A autoridade pode escolher se contrata ou não contrata. Se permanecer inerte, o particular nada poderá fazer.

A segunda é a suspensão do pagamento. Admite-se que a autoridade deixe de realizar o pagamento no tempo devido. O particular não pode se insurgir contra isso antes de noventa dias.

A terceira é alteração unilateral das condições contratuais. O poder público pode alterar as condições pactuadas originalmente. Isso inclui, inclusive, a modificação do cronograma previsto no edital.

A quarta é a imposição de sanções. O Estado pode punir, sem a intervenção de uma autoridade independente e imparcial, o particular contratado. Se isso ocorrer, caberá ao particular recorrer ao Poder Judiciário, mas sempre enfrentando a presunção de legitimidade do ato administrativo.

A quinta é a extinção do contrato por decisão unilateral da Administração. Pode ser fundada na conveniência administrativa e não apenas no inadimplemento do particular.

Em todas essas situações, o particular contratado se encontra na dependência de uma escolha do agente administrativo. Num mundo ideal, essa escolha seria sempre orientada pelo Bem Comum. Mas o mundo real é muito diferente. É muito comum que essas oportunidades sejam aproveitadas para a obtenção de resultados indevidos para ambas as partes.

O resultado prático é a redução do interesse de potenciais fornecedores. Muitas empresas preferem não se arriscar a contratar com a Administração Pública em vista dos riscos gerados por esse sistema jurídico. Mas outro efeito indireto é o aproveitamento pelo particular de oportunidades futuras para compensação por perdas passadas.

Nunca será possível eliminar a corrupção de modo absoluto. Porque não é possível eliminar a ilicitude. Mas é necessário reduzir as oportunidades para a sua prática. No direito administrativo brasileiro, isso significa a redução radical das prerrogativas extraordinárias reservadas ao poder público. É indispensável um tratamento mais igualitário entre Administração Pública e particular – não porque os interesses privados sejam superiores aos interesses públicos. Mas porque a ausência de isonomia dá oportunidade a desvios insuportáveis, em virtude da confusão entre o interesse público propriamente dito e os interesses privados reprováveis. É indispensável a adoção de mecanismos próprios da iniciativa privada. Não significa que o mercado privado seja perfeito, nem que os particulares tenham intentos filantrópicos. O ponto fundamental é o diálogo concorrencial, em que a Administração recorra à própria competição para obter propostas mais vantajosas – ainda que não tenham o menor valor.

É relevante promover a dissociação da competência administrativa. Os poderes extraordinários não devem ser exercitados pela autoridade diretamente envolvida no relacionamento com o contratado. Isso permitirá que o poder controle o poder, inclusive na via administrativa. O exercício de qualquer competência anômala deverá, então, ser absolutamente transparente.

Todas essas propostas são orientadas, em última análise, a ampliar a concepção democrática do Estado brasileiro. O respeito aos interesses dos particulares é uma exigência inerente à democracia. O particular não é um súdito e seus reclamos não se constituem em desrespeito aos poderes dos agentes públicos. Mas sempre resta uma indagação última e essencial: até que ponto o governante deseja efetivamente implantar um regime democrático?

*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.

Publicado por Marçal Justen Filho em 1.02.2015 às 9:56

Rapport National du Brésil – Association Henri Capitant des amis de la culture juridique française

Le Tiers et la norme

Rapporteur: Marçal Justen Filho

1.1 Quel est le rôle, respectivement quels sont les droits voir les obligations des tiers dans l’élaboration des normes étatiques que sont, par exemple:

De manière générale, la loi brésilienne a accru, depuis la Constitution de 1988, la participation des tiers dans l’élaboration des normes étatiques. L’art. 14 de la Constitution prévoit que la souveraineté du peuple ne s’exprime pas que dans le suffrage universel, par le vote direct et secret, mais aussi par le plébiscite, le référendum et l’initiative populaire (ci-après examinée). Les modalités d’application de cette disposition ont été precisées par la loi fédérale n. 9709/1998. Conformément à l’art. 2 de ce texte, « le plébiscite et le référendum sont les questions posées au peuple pour délibérer sur une question fondamentale d’origine constitutionnelle, législative ou administrative. » Dans les deux cas, la question est effectuée en vue de l’adoption ou du rejet des actes normatifs ayant un contenu spécifique.

La participation du peuple est beaucoup plus évidente et large dans le cadre administratif que dans le législatif. Les autorités politiques et administratives (et même judiciaires) peuvent réaliser des consultations et des audiences publiques à l’égard de n’importe quel sujet pertinent et controversé. Dans certains cas, cette audience est obligatoire. Néanmoins, dans les cadres législatif et judiciaire, il s’agit beaucoup plus d’un choix discrétionnaire de l’autorité compétente qui mène le processus d’élaboration de la norme.

Un élément important consiste dans le fait d’encourager la participation des organisations non-gouvernementales dans la formulation et la mise-en- œuvre des politiques publiques.

En général, la participation du peuple n’entraîne aucune obligation pour les individus, sauf dans le cadre des relations juridiques d’origine contractuelle. Il est fréquent que le fait de ne pas accomplir certaines exigences entraîne l’exclusion de l’individu de la participation à l’activité administrative. Cette affirmation suppose, bien entendu, l’absence d’obligations réciproques et de nature commutative.

1.1.1 La Constitution:

Il n’y a aucun dispositif constitutionnel permettant l’initiative du peuple pour proposer des amendements à la Constitution. Néanmoins, les modifications du texte constitutionnel peuvent être soumises à l’examen des citoyens par la voie des plébiscites ou référendums. Mais cette question n’est pas formellement consacrée par la Constitution. La loi n. 9709/1998 prévoit, à l’art. 3, que la tenue d’un plébiscite ou d’un référendum, portant sur les questions nationales pertinentes (comme dans le cas d’un amendement constitutionnel), dépendra de l’autorisation du Congrès National, faisant suite à la proposition d’au moins un tiers des membres qui composent l’une des ses chambres [l’Assemblée ou le Sénat].

1.1.2 La loi

L’iniciative du peuple est admise pour les propositions de lois. L’art. 61, § 2, de la Constitution prévoit que « L’initiative populaire peut être exercée par la présentation d’un projet de loi à l’Assemblée Nationale, signée par au moins un pour cent de l’électorat national, répartis dans au moins cinq Etats, avec pas moins de trois dixièmes d’un pour cent des électeurs de chacun d’eux ». Cette définition est reproduite dans l’art. 13 de la loi fédérale n. 9709/1998. Afin d’avoir une idée plus précise, il convient de préciser que l’électorat national comprend environ 143 millions de personnes.

Par ailleurs, la Constitution prévoit à l’art. 58, § 2, inc. II, que le processus législatif peut comprendre la réalisation d’audiences publiques, permettant la manifestation des différents secteurs d’activités de la société en ce qui concerne les matières examinées.

1.1.3 L’ordonnance ou le décret

La participation de tiers dans la détermination de la politique publique et dans la diffusion des règlements administratifs a été élargie de manière continue. La Constitution prévoit que l’action administrative de l’Etat devrait être faite avec la participation des citoyens. L’art. 37, § 3, prévoit que « La loi réglemente les formes de participation des usagers dans l’administration publique directe et indirecte… ». La règle se réfère spécifiquement aux services publics mais plusieurs autres dispositifs constitutionnels adoptent une solution similaire. Par exemple, l’art. 204 prévoit que « les initiatives du gouvernement dans le domaine de l’aide sociale seront prises avec le budget de la sécurité sociale prévue à l’art. 195, et d’autres sources, et organisées sur la base des directives suivantes: (…) II – La participation de la population, à travers des organisations représentatives, dans la formulation et le contrôle des actions politiques à tous les niveaux ».

Un grand nombre de textes prévoit des consultations et audiences publiques sur des questions spécifiques. Cette solution a été adoptée par la « Loi sur la procédure administrative fédérale » (loi n. 9784/1999). Son art. 32 dispose qu’ « Avant de prendre une décision, selon le jugement d’opportunité de l’autorité et la pertinence de la question, une audience publique peut être tenue afin de débattre sur le processus à adopter. » D’autre part, les lois régissant la réglementation sectorielle (énergie, télécommunications, transports publics, etc.) prévoient la possibilité de réaliser des audiences publiques et des consultations. Dans de nombreux cas, l’audience publique est même obligatoire. Ainsi, elle est prévue, par exemple, dans la loi sur les appels d’offres (loi n. 8666/1993), à l’art. 39, pour les cas des contrats à prix plus elevés.

1.2 Le tiers peut-il être chargé de produire des normes, d’édicter des réglementations?

En règle générale, non. Au Brésil, une approche très rigoureuse sur le monopole étatique du pouvoir d’édicter les règles juridiques abstraites et générales prévaut. On a admis, cependant, la possibilité pour les organisations professionnelles ou sectorielles, en principe ne provenant pas du secteur public, de créer des règles juridiques contraignantes dans les activités pertinentes à leur objet. Il s’agit du phénomène de «l’autorégulation».

1.2.1 Dans quelles circonstances (citer quelques exemples)?

L’attribution de compétence pour l’autoréglementation se produit dans les cas où les activités à réglementer sont très spécialisées. L’action formelle de l’Etat est donc insuffisante pour produire les règles normatives – cela s’explique non seulement en raison des délais et de la bureaucratie qui imprègnent l’activité de l’Etat, mais aussi de l’absence de connaissances techniques essentielles et de la rapidité exigée par ces sujets et les solutions à apporter. En règle générale, une autorisation législative est nécessaire pour valider les actions de ces entités non étatiques. De nombreux exemples peuvent être cités. Le cas le plus remarquable est celui de l’Association du Barreau du Brésil (loi n. 8906/1994) – il s’agit d’une entité à statut particulier. Mais il existe aussi des lois qui reconnaissent l’autorité réglementaire à d’autres organismes professionnels. Ainsi, la loi fédérale n. 4680/1965 dispose, dans l’art. 17, que « l’activité de publicité nationale sera régie par les principes et les normes du Code de déontologie des professionnels de publicité établis dans la Première Conférence Brésilienne de Publicité, tenue en Octobre 1957 à la ville de Rio de Janeiro ». La Chambre du Commerce d’Energie Electrique est un autre cas spécifique. La CCEE a été créée par l’art. 4 de la loi fédérale n. 10848/2004 et il s’agit d’une association civile qui a des pouvoirs législatifs pour réglementer l’activité de négociation d’électricité. Un autre cas très particulier concerne l’entité responsable de la gestion des processus de redistribution et de numérisation des chaînes de télévision et RTV – « EAD ». Il s’agit là encore d’une association civile, dont la création a été déterminée par l’invitation à soumissionner au programme de téléphonie 4G (700 MHz). Cette entité sera constituée par les opérateurs privés du sevice de téléphonie mobile dans la bande de 700 MHz et aura certains pouvoirs législatifs d’autoréglementation.

1.2.2 Où se situe la norme édictée par un tiers dans la hiérarchie des normes? En principe, la norme produite par un tiers est toujours subordonnée à n’importe quel acte de l’Etat. Elle ne peut pas contredire les dispositions légales ou réglementaires. Néanmoins, il est essentiel de noter que ces normes tendent strictement à réglementer des secteurs très spécifiques et particuliers. Habituellement, ces matières ne sont même pas soumises aux lois ni aux actes administratifs. Dans ce contexte très particulier, les normes produites par les particuliers sont pleinement contraignantes et leur efficacité est similaire à celle des autres règles d’origine étatique.

1.2.3 Qu’en est-il de la reconnaissance par l’ordre juridique d’une norme élaborée spontanément par un tiers? L’hypothèse n’est pas reconnue par l’ordre juridique brésilien. On estime que la production normative générale et abstraite relève du monopole de l’Etat – avec certaines exceptions comme dans le cas où l’autorité législative permet aux organismes privés l’autoréglementation. L’élaboration spontanée, par une personne privée, d’une norme « juridique » sans autorisation législative est considérée comme une violation à l’ordre juridique. Ses prévisions ne seront pas contraignantes et il y a même le risque de que cet acte soit qualifié d’ illicite.

1.3 Quels sont les prérogatives du tiers dans le mécanisme de contrôle de conformité des normes aux normes de rang supérieur?

Le système brésilien de contrôle de validité des actes normatifs a une large portée et comporte des solutions très différentes. Le contrôle de constitutionnalité des lois peut être realisé de manière concrète ou abstraite. Cela signifie que la Cour Fédérale Suprême a la compétence de contrôler la constitutionnalité de tout acte législatif au niveau fédéral. Toutefois, s’il existe quelques limites sur la qualité à agir pour initier cette action de contrôle, de nombreuses organisations de la société civile sont autorisées à le faire en application de l’institution « amicus curiae » qui s’est développée dans le cadre de la Cour suprême. Il s’agit donc d’un tiers (individu ou entité privée) qui n’est pas partie à la procédure, mais qui peut y participer en vue de sa représentativité unique.

S’agissant du contrôle concret, il est fait dans l’examen d’un cas qui lui est soumis, par un juge à tout niveau de juridiction – y compris d’office, sans qu’il y ait une demande spécifique des parties. Tous les individus, dont les droits ou les intérêts sont affectés par un acte normatif de l’Etat, peuvent demander aux tribunaux de prononcer une décision sur la constitutionnalité ou la légalité de celui-ci. L’ordre juridique brésilien comprend également des instruments de contrôle de validité des actes normatifs qui interfèrent dans les intérêts collectifs ou généraux. Ainsi, les syndicats et de nombreuses associations civiles peuvent demander la nullité des actes normatifs affectant leurs intérêts. Sous certaines conditions, la décision aura force de chose jugée, y compris à l’égard des individus qui n’étaient pas parties au procès.

II. L’intérêt du tiers

2.1 Le tiers doit-il justifier d’un intérêt (particulier) pour participer à une procédure administrative, lorsque celle-ci est, par exemple: En règle générale, le problème sera résolu par l’invocation d’un intérêt individuel ou en vertu des intérêts collectifs ou généraux. De nombreuses institutions ont pour objet la défense des intérêts collectifs ou généraux. Dans de tels cas, leur participation effective dépend de la pertinence des propos institutionnels et de la controverse. Néanmoins, quand il s’agit des intérêts d’un individu, la règle ne suit pas la « nécessaire pertinence » – mais la question présente des spécificités concernant les litiges (ci-dessous).

2.1.1 Contentieuse Il faut remarquer que le Brésil ne consacre pas le contentieux administratif comme c’est le cas en France. Par conséquent, le tiers n’a pas la legitimité pour prendre part à une procédure administrative. En revanche, devant le juge judiciaire, dans une affaire concernant des litiges ayant pour origine la procédure administrative, un particulier peut intervenir pour défendre certains intérêts. Dans un tel cas, l’individu doit prouver que la décision est susceptible d’affecter ses intérêts. De plus, il faut que ces intérêts soient justifiés par une circonstance exceptionnelle. Il convient de noter en outre que la loi brésilienne contient un certain nombre de solutions procédurales pour la défense des intérêts collectifs et généraux. Dans ces cas, la faculté reconnue à un individu d’intervenir dans le processus est beaucoup plus évidente. Cependant, cette intervention est réservée aux associations civiles dont l’objet est lié à la question litigieuse.

2.1.2 Non-contentieuse

Le tiers peut participer à une procédure administrative non-contentieuse dans la mesure où la décision est susceptible d’affecter les intérêts généraux de la société civile. Ainsi, par exemple, n’importe qui peut participer aux audiences et aux consultations publiques. D’autre part, la Constitution fédérale consacre la garantie individuelle du droit de pétition (art. 5, inc. XXXIV, al. ‘a’). Cela signifie que n’importe qui peut présenter à une autorité administrative ses revendications, demandant une action concrète. Ce droit peut toujours être exercé, même dans le cadre des procédures administratives non-contentieuses.

2.1.3 Le cas échéant, contractuelle

Les observations faites ci-dessus concernant la procédure administrative noncontentieuse sont également applicables à l’intervention des personnes privées dans le cadre des procédures administratives relatives aux contrats.

2.2 Le tiers doit–il justifier d’un intérêt (particulier) pour contester:

2.2.1Un acte unilatéral? Un acte contractuel?

En ce qui concerne l’intervention des personnes privées, le droit brésilien, ne fait aucune distinction selon la nature (contractuelle ou unilatérale) de l’acte administratif. Dans ce domaine on peut appliquer les observations faites cidessus quant au respect de l’objet de l’intervention des tiers dans la procédure administrative non-contentieuse.

2.3 De quel intérêt le tiers doit-il justifier pour avoir droit à l’information?

La Constitution fédérale garantit le droit d’accès à l’information. Ainsi, il est prévu à l’art. 5, inc. XXXIII, que « toute personne a le droit de recevoir des organismes publics des informations d’intérêt particulier ou d’intérêt collectif ou général, qui seront fournies dans le délai prévue par la loi sous peine de responsabilité, sauf ceux dont le secret est essentiel à la sécurité de la société et de l’Etat ». La loi fédérale n. 12527/2011 régit la question. Elle reconnait l’existence d’informations sensibles, qui ne peuvent pas être divulguées. En dehors de ces cas, la loi distingue les hypothèses de renseignements concernant les informations privées et celles relatives à « l’intérêt public ». Cette catégorie comprend les informations qui touchent l’administration des biens publics, l’utilisation des ressources publiques, les contrats administratifs ainsi que les programmes, projets et actions des entités publiques.

2.4 D’une manière plus générale, qu’est-ce qui distingue l’intérêt du tiers de l’intérêt général, voire de l’action populaire?

L’intérêt public implique la collectivité et englobe les cas où il existe une pluralité de sujets chacun titulaire de ses propres intérêts mais qui sont placés dans une situation équivalente. Il comprend également les cas dans lesquels les intérêts sont partagés, de manière similaire, par tous les membre de la société. Dans ces hypothèses, l’intérêt de l’individu peut relever de l’une de ces situations. Mais, on peut envisager une situation oú l’individu détient un intérêt spécifique et différencié, qui peut être touché par l’activité administrative. Par conséquent, il y a des cas où le tiers intervient, en tant que détenteur d’un intérêt collectif ou général, et il y a ceux dans lesquels il a un troisième type d’intérêt distinct.

III. L’exécution de tâches publiques et le tiers

3.1 Qu’en est-il de l’exécution de tâches publiques par un tiers. A quelles conditions et avec quel contrôle cette exécution par un tiers peut-elle avoir lieu, en distinguant par exemple:

3.1.1 La subvention, la concession, la délégation et l’engagement contractuel

Actuellement, dans le droit brésilien, on constate qu’il existe un accroissement graduel des hypothèses dans lesquelles des domaines en principe réservés aux personnes publiques sont dévolus aux personnes privées. Cela inclut non seulement les relations entre l’Etat et le « troisième secteur », mais aussi entre l´Etat et le secteur privé de manière plus générale. Cette situation a été profondément renforcée par l’édition de la loi fédérale n. 11079/2004, qui porte sur les partenariats public-privé.

La loi établit l’obligation de traitement égalitaire des personnes privées dans les procédures de sélection menées par l’Etat, que ce soit dans les contrats du troisième secteur d’activité que dans les contrats administratifs. La procédure de sélection pour les contrats avec le troisième secteur est obligatoire. Il s’agit d’une nouveauté consacrée par la loi fédérale n. 13019/2014. L’appel d’offres obligatoire a déjà été prévu dans la Constitution fédérale pour les contrats du marché public et pour les concessions de services publics.

Il existe un grand nombre d’instruments tendant à contrôler l’exécution des contrats par les personnes privéess, en particulier dans les contrats administratifs. Il y a même un contrôle spécifique pour les agences de régulation sectorielles, ce qui n’exclut pas le contrôle de la Cour des comptes.

La Constitution fédérale dans son art. 70, paragraphe unique, prévoit que ceux qui reçoivent des fonds publiques sont tenus d’informer la Cour des comptes. Quoi qu’il en soit, il n’y a aucun obstacle à l’examen du contenu des contrats et de leur exécution par le juge judiciaire. En outre, il n’y a pas de différences significatives entre les cas de subvention, de récompense, de délégation et d’achat conjoint. Les solutions sont similaires, même s’il existe quelques différences spécifiques (hautement spécialisés).

Enfin, nous pouvons remarquer un phénomène d’ « activité administrative non-étatique », dans lequel les intérêts collectifs sont satisfaits par l’activité désintéressée des autres. En principe, ces activités sont soumises au droit privé. Cependant, un certain nombre de règles de droit public peuvent être applicables, en particulier dans les cas où les activités déterminées sont maintenues ou favorisées par des fonds publics.

3.1.2 Le droit commercial (sociétés d’économies mixtes par exemple)

La création d’une entreprise d’Etat, selon les règles du droit commercial, dépend d’une autorisation de la loi – conformément à ce qui est prévu à l’art. 37, inc. XIX, de la Constitution fédérale. L’entreprise publique est caractérisée par le fait que l’Etat détient la majorité du capital. Elles peuvent être utilisées à la fois pour la prestation de services publics (qui ont, au Brésil, une portée beaucoup plus réduite que dans le droit français) et pour l’exploitation des activités économiques. La participation minoritaire de l’Etat dans une entreprise privée ne signifie pas que l’entreprise est une entreprise publique: l’Etat sera alors considéré comme une personne privée.

Au Brésil, l’Etat participe de manière importante dans le domaine économiqueà la fois dans le secteur des services publics et dans les activités économiques généralement privées. Ces deux hypothèses sont différenciées par la Constitution fédérale, qui consacre des régimes juridiques différents. L’Etat peut utiliser les entreprises d’Etat pour fournir des services publics et exploiter des activités économiques. Ces entreprises publiques sont donc régies par le droit commercial, mais elles sont également soumises au droit administratif. En outre, les entreprises d’Etat sont soumises à des contrôles similaires à ceux prévus pour les entités purement administratives. Le personnel est sélectionné par des concours administratifs et les contrats doivent être précédés par un appel d’offres.

3.2 Existe-t-il des domaines où l’exécution de tâches publiques par un tiers est exclue et pour quels motifs – juridiques – politiques?

Oui. Selon la loi brésilienne, certains pouvoirs de l’Etat ne peuvent pas être délégués à une personne privée. Cette question est liée à la conception de la souveraineté du peuple. On considère que toutes les compétences impliquant des pouvoirs relatifs à la souveraineté du peuple sont réservées à l’Etat. Tel est le cas des compétences politiques et législatives. C’est également le cas de l’exercice légitime de la force, en particulier la question du pouvoir de police.

Seul l’Etat est investi de tels pouvoirs, qui ne peuvent pas être transférés à une personne privée – car cela impliquerait, sans doute, une violation du principe d’égalité.

Cependant, la délégation de l’exécution des missions de service public accessoires, complémentaires à l’exercice de fonctions publiques et au pouvoir de police est de plus en plus acceptée. Ces missions, même si elles sont attribuées au secteur privé, doivent être exercées sous la stricte supérvision de l’Etat.

3.3 De manière plus spécifiques qu’en est-il de l’administration de prestations par les tiers, en particulier le régime juridique applicable au tiers prestataire ainsi qu’aux établissements de droit public?

L’ «établissement de droit public» se manifeste au Brésil de diverses manières. Traditionnellement, il y en avait deux: la collectivité territoriale et la fondation publique [similaire aux « groupements d’intérêt public » du droit français]. Plus récemment, on a crée le consortium doté de la personnalité morale publique. Dans ces trois cas, il s’agit de personnes de droit public, créés ou autorisées par la loi. La collectivité territoriale est investie de missions typiquement de l’État, comme dans le cas des agences de réglementation indépendantes. La fondation publique n’exerce pas nécessairement une activité réservée à l’Etat. Elle peut alors consacrer ses actions aux questions sociales, culturelles et scientifiques. Le consortium public permet de formaliser une coopération pour mener les activités d’intérêt commun aux différents organismes fédéraux. En général, le cadre juridique de ces entités est le même que celui réservé à l’administration traditionnelle. En effet, la Constitution fédérale assimile les diverses formes d’organisations administratives (art. 37, cap) et les soumet à un même régime juridique de base.

L’innovation la plus frappante relative à l’exercice de fonctions administratives par des personnes privées se manifeste par la concession administrative. Elle a été envisagée dans la loi des PPP (loi fédérale n. 11079/2004) et semble avoir été influencée par la figure du « Marché d’Entreprise de Travaux Publics » français. Selon la loi brésilienne, le contrat de concession administrative attribue à la personne privée une obligation d’effectuer un travail déterminé, nécessaire (même indirectement) pour la prestation de services de l’Administration Publique. La personne privée sera remunérée exclusivement par l´Etat, mais seulement après que les travaux ont été mis à disposition des usagers. Le contrat peut également prévoir la performance des activités au profit immédiat du grand public, avec un avantage indirect à l’Administration Publique. Dans ces cas, la personne privée n’agit pas pour son propre compte à l’égard des utilisateurs et ses actions seront attribuées à l’Administration Publique.

3.4 Quel est le régime de responsabilité applicable au tiers qui exécute une tâche publique?

Il n’existe aucune distinction de traitement entre l’Etat et le tiers dans les cas où il y a une délégation formelle des fonctions administratives à une personne privée. La Constitution fédérale prévoit que la responsabilité de l’Administration Publique est objective (art. 37, § 6). Les mêmes règles sont donc applicables en cas de délégation à une personne privée. En revanche, il y a toujours une controverse doctrinale et jurisprudentielle concernant la responsabilité de l’Etat pour les actes d’omission – même en cas de contentieux avec les tiers particuliers.

Toutefois, il n’existe pas de réponse claire pour les hypothèses du troisième secteur. La tendance est de retenir que, même lorsque les personnes privées prennent en charge une mission de service public, leur activité continuera d’être considérée comme étant généralement privée et sera ainsi subordonnée au système commun de la responsabilité civile, même si elle bénéficie de fonds ou d’autres avantages de la part de l’Etat.

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