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Publicado por Marçal Justen Filho em 7.12.2015 às 21:07

Coluna da Gazeta do Povo – Seis indícios de corrupção nas contratações administrativas

Marçal Justen Filho*

As reiteradas notícias sobre corrupção em contratações administrativas não conduziram à eliminação de práticas reprováveis no setor. Ao que parece, as providências repressivas não têm sido suficientes para colocar um ponto final nesses desvios.

Seria uma ingenuidade incompatível com a realidade dos fatos supor que esses abusos somente ocorrem em contratações promovidas perante determinados órgãos ou entidades. Por isso, é necessária atenção e exame das circunstâncias dos casos concretos para identificar os abusos – que, como é evidente, são sempre disfarçados em soluções orientadas à promover o “bem público”.

Adiante estão arroladas situações que usualmente envolvem práticas abusivas. É evidente que não se trata de presunção absoluta, mas os eventos abaixo narrados são muito comumente relacionados com violação à ordem jurídica.

1) Requisitos de habilitação excessivos, não justificados de modo claro e simples: O modo mais simples de direcionar indevidamente uma licitação consiste em adotar requisitos de habilitação que comprometam a universalidade da disputa. Isso não equivale a reconhecer a invalidade de requisitos de habilitação severos. Há casos em que é necessário exigir que o licitante comprove experiência anterior diferenciada. Mas isso somente é admissível quando o objeto do contrato for efetivamente complexo, difícil de ser executado. Em tais casos, a necessidade de requisitos de habilitação severos é evidente e pode ser justificada facilmente. Sempre que o objeto for relativamente simples ou envolver atividades destituídas de complexidade, a exigência de requisitos de participação severos é um forte indício de práticas reprováveis. Em tais casos, caberá à Administração expor as razões da exigência, o que envolverá raciocínio técnico. A recusa de justificativa, a dificuldade em fazê-lo ou a adoção de cláusulas genéricas (“supremacia do interesse publico”) são fortíssimos indícios de desvios reprováveis.

2) Exigências contratuais excessivas, desnecessárias para a obtenção de um resultado satisfatório: Raciocínio similar se verifica nos casos em que o edital contempla requisitos contratuais desnecessários. São aqueles casos, por exemplo, de execução da prestação contratual em prazos exíguos ou em condições muito problemáticas, sem que isso seja necessário para satisfazer as necessidades da Administração. Essa hipótese compreende, inclusive, critérios técnicos de julgamento. Um exemplo típico é a previsão de classificação mais vantajosa para a proposta que oferecer a entrega da prestação no mesmo dia da formalização do contrato. Essa solução, na maioria das vezes, é inútil, eis que é indiferente para a Administração receber o objeto no mesmo dia da assinatura do contrato.

3) Realização de diligências “anômalas”, sem observância de publicidade: uma prática altamente reprovável é a realização pela Administração de diligências “estranhas”, “incomuns” e excepcionais, no curso da licitação, sem prévia comunicação às parte. Até se pode admitir que, em situações muito peculiares, a divulgação da realização da diligência possa comprometer a sua eficácia. Mas a regra é distinta. Muito menos cabível é a realização de diligências sem o acompanhamento e o controle das partes. Um caso evidente é a diligência secreta que conduz à conclusão de que o licitante preenche requisitos de participação objeto de impugnação por outra parte. A conduta administrativa, que impede que o impugnante acompanhe a diligência, é altamente suspeita.

4) A realização de “testes” secretos, que conduzem à reprovação da prestação oferecida ou executada por um dos licitantes: é evidente que a prestação desconforme com as exigências do edital deve ser reprovada. Mas não é incomum que a recusa do particular em concordar com exigências ilícitas resulte na reprovação do produto por ele ofertado. Em tais casos, a Administração providencia um teste, usualmente aplicado sem observância do princípio da publicidade, para considerar que o objeto oferecido apresenta defeitos. Como decorrência, a proposta do licitante é desclassificada. Essa prática se consuma muito mais comumente depois da conclusão do certame. O licitante vencedor é convocado para ofertar vantagens indevidas a algum agente público. Em caso de recusa, produz-se um teste a destempo e se promove a sua exclusão.

5) Desfazimento do certame mediante invocação de razões implausíveis: outra alternativa para retaliação contra o licitante que se recusa a conceder vantagens indevidas é o desfazimento do certame. Pode ocorrer ou a anulação ou a revogação. Em ambos os casos, são referidas razões pouco usuais, que envolvem fatos controvertidos ou destituídos de consistência.

6) A recusa pela Administração do cumprimento fiel do contrato, impondo sérios danos ao particular: um caso emblemático é a ausência de adimplemento do contrato pela Administração, depois de o particular ter executado aquilo que lhe cabia. Em muitas hipóteses, a Administração nem mesmo invoca alguma razão jurídica. Pura e simplesmente deixa de executar a prestação que lhe cabe. Em outros casos, atrasa o recebimento formal do objeto, embora passe a dele usufruir imediatamente. Enfim, há casos em que a Administração alude ao art. 78, inc. XV, da Lei 8.666 (que prevê a possibilidade de rescisão do contrato em caso de atraso superior a noventa dias), tal como se o prazo contratual fosse irrelevante. Em todas essas situações, é muito provável existir uma tentativa de constranger o particular a oferecer vantagens indevidas para agentes públicos.

A Administração Pública detém uma pluralidade de competências anômalas, que lhe são atribuídas para melhor satisfazer os interesses coletivos. Não é admissível que tais poderes sejam utilizados para viabilizar a corrupção. O exercício desses poderes anômalos somente é válido quando realizado de modo transparente, com observância do princípio da publicidade e mediante a demonstração do inequívoco atendimento aos interesses públicos. Condutas sigilosas, destituídas de fundamentação satisfatória, consumadas de modo incompatível com as práticas usuais e sem respeito ao princípio da boa-fé devem ser reprovadas e invalidadas de modo imediato, especialmente porque há grande probabilidade de práticas relacionadas à corrupção.

*Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.



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