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Publicado por Marçal Justen Filho em 16.06.2011 às 12:40

Choque de realidade

Artigo publicado no jornal Gazeta do Povo em 16/jun/2011:

Choque de realidade
Publicado em 16/06/2011 | MARÇAL JUSTEN FILHO

O que está em risco imediatamente é a União Europeia. Para sobreviver como um bloco, a União Europeia terá de ajustar-se em conjunto, com os diversos países fazendo concessões recíprocas

Impulsivamente, a resposta é que o Estado de Bem-Estar europeu é uma conquista civilizatória irreversível. Socialmente, não há forma de eliminar prestações estatais asseguradas aos indivíduos. Juridicamente, o princípio da vedação ao retrocesso impede a supressão de garantias conquistadas pela sociedade.

No entanto, é necessário meditar antes de responder. As dúvidas sobre o futuro do Estado de Bem-Estar Social em face da crise socioeconômica enfrentada pela União Europeia produzem um choque de realidade. O futuro está em aberto e cabe a todos nós evitar que conquistas civilizatórias essenciais sejam perdidas. Ou seja, o “fim da História”, preconizado em 1992 por Fukuyama, foi uma simples ilusão própria da prepotência humana. Mas talvez todos nós, lá no fundo, compartilhássemos essa visão utópica.

Porque a consagração do Estado de Bem-Estar Social europeu foi recebida como a afirmação definitiva e irreversível de uma nova era civilizatória. A União Europeia apresentou não apenas uma função direta e material. Também exerceu uma função simbólica, relacionada com o ideal da superação definitiva das divergências e dos conflitos entre as Nações. A União Europeia representou, de um certo modo, a restauração do Paraíso e a instauração da felicidade eterna. Os indivíduos poderiam contar com o fim das guerras e com a satisfação dos seus direitos fundamentais, tudo garantido por um poder não apenas estatal, mas supranacional.

Mas o tempo do Paraíso e da paz eterna ainda não chegou. Há duas ordens de problemas inafastáveis.

Por um lado, a proposta da União Europeia envolve uma insuperável contradição, decorrente da distinção entre a “Europa” e o “resto”, entre os “europeus” e os “não europeus”. Isso resultou numa política de ampliação contínua da União Europeia. Abranger todos os países em uma mesma ordem política, jurídica, social e econômica é uma solução que encontra limites práticos insuperáveis.

Além disso, a ampliação comunitária agrava uma outra face do problema. Há diferenças entre os povos, as nações, as economias ao interno da União Europeia. A diversidade é um dado do mundo real e não pode ser eliminada por uma decisão política.

A crise atual abala os países economicamente mais fracos, que encontram dificuldade em encontrar solução dentro dos limites do direito comunitário.

Se a crise alastrar-se para outros países, é provável que Alemanha, França e Inglaterra optem por cessar a ajuda às economias alheias. Então, a diferenciação entre os países europeus ricos e os pobres será refletida em níveis diversos de participação na ordem comunitária.

Em suma, alguns países poderão preferir afastar-se da União Europeia para defender o seu modelo interno de Estado de Bem-Estar Social. Isso significará retornar a uma organização sócio-política fragmentada, em que cada país promoverá um modelo próprio de Estado de Bem-Estar Social, nos limites da própria capacidade econômica. Os países europeus preferirão abandonar o modelo comunitário a promover restrições radicais nos compromissos sociais.

Portanto, não está em risco propriamente o Estado de Bem-Estar Social. O que está em risco imediatamente é a União Europeia. Para sobreviver como um bloco, a União Europeia terá de ajustar-se em conjunto, com os diversos países fazendo concessões recíprocas. Isso poderá conduzir à atenuação de alguns benefícios sociais e individuais. Não é possível prever a extensão dessas limitações. Qualquer que seja a alternativa, nunca será aceitável abandonar o compromisso com a promoção da dignidade humana. A dinâmica da História permanece em curso, mas alguns valores estão incorporados definitivamente na civilização. Cabe a cada um o compromisso de defender essa concepção, sem o qual perde a razão de ser a nossa existência como indivíduos e como nação. Tal se aplica tanto à Europa como ao Brasil.

Marçal Justen Filho, advogado, é doutor em Direito pela PUCSP.



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