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Publicado por Marçal Justen Filho em 25.05.2016 às 21:32

Coluna da Gazeta do Povo / Migalhas – Direito Constitucional do Desafeto*

Marçal Justen Filho**

O jurista alemão Günther Jakobs cunhou a expressão “direito penal do inimigo” para sumariar a concepção de que as garantias do direito penal apenas se aplicariam aos sujeitos que reconhecessem a legitimidade e o modelo civilizatório consagrado por um determinado Estado. O “inimigo” não poderia invocar em benefício próprio as garantias asseguradas pela ordem jurídica que se propõe a destruir. Em outras palavras, aquele que assume o posicionamento externo a uma ordem jurídica e nega a sua força vinculante não deve usufruir dos benefícios por ela previstos.

A concepção foi teorizada na década de 1980. Mas é evidente que esse enfoque é um reflexo dos instintos mais primários da Humanidade. Encontra-se na origem das concepções que reservam a condição de pessoa apenas para alguns e não para todos os seres humanos. Sob um certo ângulo, então, a tese do direito penal do inimigo não apresentou maior originalidade. Mas o incremento do terrorismo propiciou a sua difusão. Os Estados passaram a praticar regras distintas para aqueles que se reconhecem como inimigos. Mais do que isso, os Estados adotaram presunção de que todo indivíduo é potencialmente um inimigo, até que se comprove em contrário. Todos nós, ao trafegarmos por um aeroporto internacional, experimentamos diretamente essa presunção.

Esse tema permite aludir a um fenômeno claro que se produz no Brasil dos dias de hoje e que alcança dimensão jurídica. À falta de melhor denominação, pode ser identificado como “Direito Constitucional do Desafeto”. Trata-se da denegação da condição de pessoa àquele que professa uma ideologia ou preferência diversa. Segundo essa concepção, o direito constitucional deve ser circunscrito apenas àqueles que integram o mesmo grupo. Não se trata propriamente de negar o conteúdo das normas constitucionais, nem de rejeitar a proteção à dignidade humana. O ponto fundamental consiste em reservar essa ordem jurídica apenas para os que compartilham das idiossincrasias reputadas como aceitáveis.

Aquele que professa uma concepção diversa passa a ser concebido como um “desafeto”. Por isso, não é merecedor da tutela da ordem jurídica. Deixa de ser considerado como um ser humano, dotado de dignidade intrínseca e inviolável, investido do direito de ser diferente, de pensar de modo diverso e realizar escolhas próprias. Os discordantes não são reconhecidos como titulares da mesma humanidade.

O resultado direto é a duplicação da ordem jurídica. Há o direito constitucional dos amigos e o direito constitucional dos desafetos. Cria-se um critério subjetivo de interpretação e de aplicação da Constituição. A mesma norma jurídica passa a ter duas dimensões normativas. Uma delas é reservada para os integrantes de uma facção. Para os adversários, alçados à condição de desafetos, adota-se uma interpretação neutralizadora da norma jurídica, limitando a sua eficácia protetora.

Essa patologia se encontra na essência desses despropósitos que testemunhamos diariamente. Um deputado promove o elogio a um torturador. Outro deputado cospe nele. Ambos se julgam no exercício de um direito assegurado constitucionalmente, tal como se torturar um desafeto fosse legítimo e cuspir no próximo se constituísse em conduta protegida pelo direito (e pela moral). Outro indivíduo vai à televisão para defender a sua conduta de cuspir em quem o ofendeu, invocando uma forma de legítima defesa da honra. Outros resolvem assediar e insultar uma senadora.

Com algum sarcasmo, até poderíamos observar que a institucionalização do cuspo como manifestação de desagrado não é assim tão grave. Afinal, apenas poderia gerar a transmissão de alguma doença ou a desidratação dos mais exaltados. Só falta alguém propor “cuspa, mas não mate!”.

Mas cuspir não é obviamente o núcleo do problema. A essência se encontra na fanatização de posições, que transforma a discordância em inimizade e produz a fratura da ordem social (e jurídica, como decorrência). Essas manifestações todas se enquadram todas num mesmo esquema, cujo nome é fascismo.

A Constituição vale igualmente para todos. Ninguém está acima dela. Todos nós somos titulares da mesma dignidade, que implica não apenas direitos, mas também deveres. A dignidade própria assegura-me o respeito em face de todos. Mas a dignidade alheia impõe-me destinar a todos os demais idêntica consideração. O direito constitucional é indivisível e a concepção de reservar direitos e garantias apenas para os seguidores de determinada posição é abominável. A indignação contra os desvios praticados não legitima a despersonalização alheia. Não construiremos o Brasil que queremos por essa via. O resgate dos desvarios ocorridos no Brasil somente pode ser iniciado pelo respeito aos valores essenciais. O primeiro passo reside em reconhecer que a dignidade alheia é intangível, tanto quanto a nossa.

*Texto publicado no caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo, em 16 de maio de 2016 e no Informativo Migalhas de 25 de maio de 2016.

**Marçal Justen Filho, advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, escreve mensalmente para o caderno Justiça & Direito do jornal Gazeta do Povo.



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