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Publicado por Marçal Justen Filho em 18.01.2018 às 19:35

Administração Pública brasileira tem muito a aprender com a Amazon

Consultor Jurídico

OPINIÃO

  • 18 de janeiro de 2018, 6h13

Por Marçal Justen Filho*

Um grande problema para qualquer comprador é a seleção adversa, expressão utilizada para indicar o risco de pagar pouco por um produto destituído de qualidade mínima. Esse risco aumenta quando o critério adotado pelo comprador é simplesmente o menor preço.

A administração pública brasileira sofre de modo intenso com o problema da seleção adversa. A generalização indiscriminada do uso do pregão tem causado problemas cada vez mais insuportáveis para o Poder Público. O Estado brasileiro passou a adquirir produtos imprestáveis sob a justificativa de pagar um valor irrisório. Mas, qualquer que seja o montante pago, a compra é sempre desvantajosa quando o produto adquirido não prestar para nada.

Para piorar as coisas, tem-se difundido a tese de que o pregão pode ser utilizado para a aquisição de qualquer objeto. Bastaria existir um “mercado competitivo”, que propiciasse ofertas reduzidas. O resultado prático é desastroso.

E o pior é que as mesmas pessoas que defendem o uso do pregão se revoltam contra a ausência de qualidade das prestações executadas. Tal como se as duas questões não fossem faces indissociáveis do mesmo fenômeno.

Certamente, o pregão é uma solução útil e valiosa, quando presentes os pressupostos para o seu uso. Mais ainda, pode ser utilizado somente quando presentes algumas cautelas.

Eu tenho perguntado quando a administração pública brasileira poderá recorrer à Amazon para fazer as suas compras. Essa indagação tem sido tomada como brincadeira, mas não o é. Porque a Amazon vai demonstrando como é possível promover contratos com preço cada vez mais reduzido, sem perda da qualidade necessária para satisfazer o comprador.

Numa matéria publicada em 6 de dezembro de 2017, o The New York Timesanalisou um novo aspecto do fenômeno Amazon. O artigo, de autoria de Farhad Manjoo, tem o título “The hidden player spurring a wave of cheap consumer devices: Amazon” — que poderia ser traduzido por “O operador oculto promovendo uma onda de equipamentos de consumo baratos: Amazon”.

Esse artigo analisa o lançamento de uma câmera para conexão pela internet, destinada basicamente a uso doméstico. O produto é produzido por uma empresa com pouco mais de um ano de existência. Esse tipo de câmera é conhecido no mercado, mas a sua comercialização apresenta três pontos revolucionários. O primeiro é o preço: vinte dólares, enquanto os competidores praticam preços oito a dez vezes maiores. O segundo é a qualidade, que é equivalente à dos competidores. O terceiro é a via de comercialização: a Amazon. Os fabricantes narram que o produto foi concebido para utilizar especificamente a Amazon como canal de vendas e que somente a comercialização em grande quantidade — propiciada pela Amazon — viabiliza economicamente o empreendimento.

Mas a questão não se restringe à comercialização em massa. O aspecto fundamental destacado no referido artigo é a revisão dos consumidores, que é divulgada pela Amazon no mesmo espaço em que o produto é ofertado. O comprador de qualquer produto é convocado pela Amazon a fazer uma resenha do produto. Ele é totalmente livre para aprovar ou desaprovar, para apontar os defeitos e as virtudes. Resenhas negativas eliminam o produto do mercado. Ninguém compra um produto que é descrito como imprestável pelos consumidores. E é fundamental salientar que, no sistema estadunidense, o consumidor tem o direito de devolver o produto quando não tiver ficado satisfeito.

Portanto, o produto necessita apresentar qualidade para permanecer no mercado. Essa é uma providência essencial para neutralizar a assimetria de informações do consumidor. Trata-se da reputação do produto no mercado, que é gerada pela experiência dos consumidores mais antigos. Isso significa que a Amazon não está interessada apenas em vender produtos, mas tem a consciência de que a satisfação do consumidor é indispensável para assegurar a continuidade dos negócios.

Sob um certo ângulo, a Amazon opera um sistema de pregão. Os diversos fornecedores oferecem os seus produtos on-line e os compradores realizam as suas compras tomando em vista a qualidade e o preço.

Portanto, a administração pública brasileira tem muito a aprender com a Amazon. O mais simples seria abandonar a sua pretensão de criar um sistema próprio de compras e recorrer àquilo que já deu certo. Melhor comprar na Amazon do que gastar tempo, enfrentar dificuldades intermináveis e acabar com bens e serviços defeituosos e imprestáveis.

No entanto e supondo que o “regime de direito administrativo é incompatível com a Amazon” — haverá quem defenda essa tese —, a administração pública brasileira não tem o direito de ignorar as lições da experiência.

A primeira consiste em conjugar a atividade de aquisição do produto e de sua utilização. Ou seja, a autoridade competente para realizar o pregão deve ser a mesma encarregada de fruir do objeto adquirido. O pregoeiro “especializado” é um sujeito que compra os produtos que não vai utilizar e cuja preocupação fundamental é obter o preço mais reduzido possível. Isso potencializa o risco de comprar produtos imprestáveis simplesmente porque o preço é reduzido.

A segunda é reconhecer que a finalidade da licitação não é simplesmente obter um preço reduzido. É contratar o objeto de qualidade mínima adequada pelo preço mais reduzido.

A terceira é promover a efetiva avaliação da qualidade da prestação recebida em todos os contratos. Cada agente administrativo deve ser convocado a fornecer a sua opinião sobre os objetos e serviços executados por um particular que tenha sido contratado. Isso não significa, como é evidente, inabilitar o licitante simplesmente porque alguém não ficou satisfeito com a prestação executada. Mas esse gigantesco banco de informações deve ser utilizado para balizar as contratações futuras.

Muitas outras cogitações podem ser realizadas. Por exemplo, o pregão deveria ser reservado apenas para contratos em que não existissem prerrogativas extraordinárias da Administração, pois muitos fornecedores se recusam a disputar um contrato com riscos muito elevados. Mas isso já envolve uma revisão muito maior do direito brasileiro.

Enfim, a administração pública brasileira tem muito a aprender. Especialmente com a Amazon.

*Marçal Justen Filho é mestre e doutor pela PUC/SP

Publicado por Marçal Justen Filho em 20.10.2017 às 9:31

IN 1/2017 não deve ser aplicada apenas a casos envolvendo a Presidência

Consultor Jurídico

OPINIÃO

  • 19 de outubro de 2017, 6h21

Por Marçal Justen Filho*

A Instrução Normativa 1, de 13 de outubro de 2017, foi editada pela Presidência da República para regulamentar a dosimetria da penalidade de impedimento de licitar e contratar, cominada no artigo 7º da Lei 10.520. A sua edição decorreu de entendimento adotado pelo TCU, no Acórdão 754/2015-Plenário. Ainda que a disciplina adotada possa despertar alguma crítica, trata-se de um enorme avanço para o processo administrativo sancionatório.

1. A exigência fundamental da previsibilidade quanto ao sancionamento
Um dos princípios fundamentais do sancionamento jurídico (em qualquer ramo do Direito) consiste na previsibilidade. É essencial a existência de norma abstrata descrevendo não apenas a ilicitude, mas também a sanção cominada. Essa é uma garantia inerente a uma ordem democrática.

O princípio da legalidade impõe que essa norma abstrata sancionatória seja veiculada por lei. Essa é uma decorrência direta do artigo 5º, inciso II, da CF/88. A determinação do inciso XXXIX da CF/88 (“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”) aplica-se também ao ilícito administrativo.

Tem-se admitido, na prática, que a lei contemple uma descrição genérica do ilícito administrativo, remetendo à autoridade administrativa o poder para um detalhamento mais preciso. Essa é uma questão jurídica em aberto, no entanto.

2. A exigência fundamental de proporcionalidade
Ocorre que a disciplina em uma norma geral e abstrata é insuficiente para assegurar o sancionamento adequado, personalizado em face das circunstâncias do caso concreto. A individualização da sanção é inerente ao processo judicial ou administrativo de apuração do ilícito e de imposição do sancionamento. Justamente por isso, a própria CF/88 determina que “a lei regulará a individualização da pena…” (artigo 5º, inciso XLVI). Também essa determinação alcança as penalidades administrativas.

Porém, a individualização da punição envolve uma atuação decisória fundada no princípio da proporcionalidade. O dimensionamento (dosimetria) da sanção concretamente imputada deve refletir tanto a gravidade objetiva da conduta praticada quanto a reprovabilidade do elemento subjetivo do agente.

A ordem jurídica e as demandas da sociedade exigem que o sancionamento seja proporcional à conduta ilícita. A punição excessiva viola os valores fundamentais e se constitui num fator que dificulta o sancionamento concreto. A repressão insuficiente é uma ofensa à ética e incentiva a ilicitude.

3. A tendencial variação em face das circunstâncias
Em face desses pressupostos, existe tendencial variação na punição efetivamente imposta para os ilícitos concretamente praticados. Cada situação e cada sujeito apresentam peculiaridades próprias, o que se reflete na dosimetria da sanção aplicada.

4. A situação concreta e a IN 1/2017 – Presidência da República
Ocorre que a ausência de regras mais específicas sobre o sancionamento administrativo produziu, na nossa prática diária, a tendência à dosimetria arbitrária. As autoridades competentes adotavam padrões de punição desvinculados das circunstâncias concretas. Não era incomum que a autoridade aplicasse o sancionamento máximo, ainda quando a norma legal tivesse previsto uma margem de discricionariedade.

A IN 1/2017 versa especificamente sobre o sancionamento previsto no artigo 7º da Lei do Pregão (Lei 10.520/2002), cuja redação é a seguinte:

“Art. 7º Quem, convocado dentro do prazo de validade da sua proposta, não celebrar o contrato, deixar de entregar ou apresentar documentação falsa exigida para o certame, ensejar o retardamento da execução de seu objeto, não mantiver a proposta, falhar ou fraudar na execução do contrato, comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude fiscal, ficará impedido de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios e, será descredenciado no Sicaf, ou nos sistemas de cadastramento de fornecedores a que se refere o inciso XIV do art. 4º desta Lei, pelo prazo de até 5 (cinco) anos, sem prejuízo das multas previstas em edital e no contrato e das demais cominações legais”.

Nesse cenário, a Instrução Normativa 1/2017 propicia um relevante aperfeiçoamento para o processo administrativo sancionatório. Consagra formalmente a necessidade de adequação da previsão normativa abstrata às circunstâncias da ilicitude concretamente praticada. Mais ainda, estabelece padrões mais definidos para a formação da decisão punitiva.

5. O reconhecimento da limitação à órbita federativa
Um aspecto fundamental reside no reconhecimento de que o sancionamento fundado no artigo 7º da Lei do Pregão restringe-se à órbita federativa sancionadora. Essa é uma questão de extrema relevância.

O problema se relaciona com a jurisprudência — equivocada, com todo o respeito (e, pior, invocando muitas vezes uma antiga passagem doutrinária deste autor) — do STJ. Apreciando o artigo 87, incisos III e IV, da Lei 8.666, o STJ firmou entendimento de que as sanções de suspensão do direito de licitar e de declaração de inidoneidade produzem efeitos jurídicos equivalentes, no âmbito de todas as esferas federativas. Essa interpretação não encontra respaldo na disciplina literal da Lei 8.666. Mais ainda, é incompatível com a proporcionalidade.

O mais grave é que a interpretação reflete a louvável intenção de proteger a administração pública, mas produz efeitos desastrosos: reduz a amplitude de potenciais licitantes, acarretando a exclusão daqueles que, tendo cometido uma falta de menor gravidade, recebem tratamento idêntico àquele reservado para as infrações mais reprováveis. A interpretação do STJ é ainda mais nociva porque reputa que o sancionamento em uma esfera federativa se comunica a todas as demais. Portanto, a suspensão do direito de licitar imposta por um município impediria a contratação dele por qualquer outro ente administrativo.

Ora, essa interpretação contaminou, em muitas oportunidades, a aplicação do artigo 7º da Lei 10.520. Em alguns casos concretos, determinou-se que o impedimento de licitar e contratar ali previsto extrapolaria os limites federativos. Esse entendimento foi formalmente repelido pela IN 1/2017, que reconhece que o sancionamento imposto pela Presidência da República produz efeitos restritos à órbita da União. Portanto, não alcança estados, Distrito Federal e municípios. Essa interpretação encontra respaldo na redação do artigo 7º da Lei do Pregão, que consagra a preposição “ou” ao elencar as órbitas federativas perante as quais o sancionamento produzirá seus efeitos.

6. A diferenciação das ilicitudes previstas no artigo 7º da Lei do Pregão
Outro aperfeiçoamento relevante consistiu em diferenciar as várias ilicitudes previstas no artigo 7º da Lei do Pregão. O dispositivo contempla uma pluralidade de condutas ilícitas, cominando-lhes genericamente o sancionamento de impedimento de licitar e de contratar por “até” cinco anos.

Esse tratamento uniforme propiciou, muitas vezes, a identificação de condutas ilícitas dotadas de reprovabilidade muito diversa. Esse entendimento não é compatível com o princípio da proporcionalidade. É evidente que a conduta de deixar de assinar o contrato não é necessariamente equivalente àquela de apresentar documento falso. Não há fundamento para impor sancionamento equivalente em tais hipóteses.

A IN 1/2017 impõe tratamento diferenciado proporcional à gravidade das condutas infracionais. Assim, por exemplo, a ausência de formalização do contrato, por ato reprovável do particular, acarretará sanção limitada a quatro meses (artigo 2º, inciso I). Já a apresentação de documentação falsa é sancionável por impedimento de contratar por 24 meses (artigo 2º, inciso III).

7. A previsão de agravantes e atenuantes
Um terceiro aspecto a ser destacado é a previsão de circunstâncias atenuantes e agravantes, a serem consideradas para a fixação da penalidade em concreto. Essa disciplina impõe à autoridade julgadora tomar em consideração também as ocorrências externas à infração cometida. Assim, por exemplo, a prática de ilícito nos 12 meses anteriores se constitui em agravante (artigo 3º, inciso I), que autoriza a majoração da sanção em até 50%.

De modo genérico, as agravantes relacionam-se com a presença do dolo ou da culpa grave. A penalidade deverá ser aumentada quando o sujeito praticou consciente e intencionalmente o ilícito. Quando menos, verificou-se situação em que o sujeito não podia deixar de ignorar a ilicitude de sua conduta.

Uma agravante que desperta a atenção, no entanto, é aquela do artigo 3º, inciso IV. Trata-se de declaração falsa quanto à condição de beneficiário de tratamento diferenciado. A regra é especificamente apropriada para os licitantes que invocam, sem preencher os requisitos, a condição de microempresa ou empresa de pequeno porte — objeto de tratamento preferencial por parte da LC 123. Deve-se entender que essa agravante somente poderá ser aplicada quando o sujeito tinha conhecimento da ausência de preenchimento dos requisitos exigidos.

Já as circunstâncias atenuantes se relacionam à ausência de elemento reprovável na conduta ilícita, o que impõe a redução da penalidade em até 50%. São aquelas hipóteses em que a infração decorre de culpa leve, configurando-se como uma “falha escusável” (artigo 4º, inciso I). Essa fórmula verbal compreende as hipóteses de ausência de dolo, o que significa a ausência de consciência ou de vontade de praticar o ilícito. Mas exige ainda mais que a infração se configure em hipóteses de complexidade fática (técnica, jurídica, econômica), em face das quais a violação à lei decorreu de descuidos de pequena monta.

8. A garantia da ampla defesa e do contraditório
Não deixa de ser sintomático que mereça destaque a renovação contemplada na IN 1/2017 quanto à garantia da ampla defesa e do contraditório. Em princípio, a disciplina do artigo 5º, incisos LIV e LV, da CF/88 deveria ser suficiente. Não existiria necessidade em reiterar esses direitos fundamentais numa norma infralegal.

Lamentavelmente, no entanto, a prática administrativa continua a ser refratária a isso. Continua a prevalecer o entendimento de que o processo administrativo punitivo é instaurado apenas depois de a autoridade administrativa ter reconhecido a existência de um ilícito e decidido impor ao agente a punição. Ou seja, a decisão punitiva preexiste ao processo administrativo, razão pela qual todas as defesas e provas requeridas pelo acusado se configuram como procrastinatórias. Essa é uma herança da experiência não democrática da atividade administrativa.

Torna-se necessário reiterar, por isso, que é antijurídico adotar decisão punitiva antes de instaurar o processo administrativo. Mais do que isso, a decisão sancionatória somente pode ser o resultado de um processo norteado pelo contraditório e pela ampla defesa. Por isso, o acusado tem o direito de produzir provas e, inclusive, requerer diligências. Negar-lhe oportunidade para tanto é uma infração administrativa grave. Tão grave quanto o é violar os interesses da administração pública numa licitação ou num contrato administrativo.

9. A aplicação extensiva da IN 1/2017: as sanções da Lei 8.666
A IN 1/2017 refere-se apenas à sanção do artigo 7º da Lei 10.520. No entanto, é evidente a sua aplicabilidade também às sanções da Lei 8.666. Em primeiro lugar, a exigência de proporcionalidade alcança não apenas o sancionamento de ilícitos praticados no âmbito do pregão. Todas as infrações cometidas no âmbito das licitações em geral e dos contratos daí decorrentes subordinam-se ao mesmo regime constitucional.

Depois, grande parte das infrações contempladas no artigo 7º da Lei do Pregão apresenta equivalência com aquelas cominadas na Lei 8.666. Em muitas hipóteses, a própria redação legal é similar (senão idêntica).

Logo e na medida em que se configurem equivalências entre os diplomas, a sua aplicação deve ser submetida ao mesmo regime.

10. A aplicação extensiva na IN 1/2017: a administração federal
A IN 1/2017 destina-se formalmente a dispor sobre ilicitudes no âmbito da Presidência da República. É muito problemático, no entanto, que os demais órgãos da administração pública direta, no âmbito da União, deixem de adotar as regras ali consagradas.

Não haverá fundamento para que a autoridade integrante da administração federal afirme que os limites contemplados na IN 1/2017 são reservados apenas para o relacionamento entre o sujeito privado e a Presidência da República — tal como se as orientações políticas fundamentais dali não proviessem. Quando muito, a invocação da autonomia da autoridade pode se traduzir em solução específica, demonstrando a existência de razões suficientes para afastar os padrões contemplados na IN 1/2017.

*Marçal Justen Filho é mestre e doutor pela PUC/SP

Publicado por Marçal Justen Filho em 9.10.2017 às 15:30

Os novos modos de gestão da ação civil pública: reforma das administrações centrais/serviço público e regulação/a contratualização da ação administrativa

Relatório brasileiro do Terceiro Painel (Reforma do Estado) do Congresso “França-Brasil: um diálogo entre sistemas jurídicos, realizado em maio de 2009, na cidade de Porto Alegre. O evento foi resultado de uma parceria entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, do Instituto de Direito Comparado Brasil-França, da Société de Législation Comparée, da Université de Strasbourg e a Université Paris I Panthéon-Sorbonne.

Arquivado em Eventos

Publicado por Marçal Justen Filho em 5.10.2017 às 11:53

Serviços de interesse econômico geral no Brasil: os invasores

In: Arnoldo Wald, Marçal Justen Filho e Cesar Augusto Guimarães Pereira (coords.). O Direito Administrativo na Atualidade. Estudos em homenagem ao centenário de Hely Lopes Meirelles. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 785-819.

Publicado por Marçal Justen Filho em 31.08.2017 às 18:19

O Direito Administrativo de Espetáculo

In: Alexandre Santos de Aragão e Floriano de Azevedo Marques Neto (Org.). Direito Administrativo e seus novos paradigmas, 2. ed., Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 57-79.

Arquivado em Artigos

Publicado por Marçal Justen Filho em 30.08.2017 às 19:47

O Direito Administrativo na Atualidade: Estudos em homenagem ao centenário de Hely Lopes Meirelles

Obra coordenada por Arnoldo Wald, Marçal Justen Filho e Cesar A. Guimarães Pereira em homenagem ao centenário de Hely Lopes Meirelles. Foram reunidos trabalhos de diversos juristas conceituados na área de direito público. O prefácio é do Ministro do STF Gilmar Ferreira Mendes.

WALD, Arnoldo; JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, Cesar Augusto Guimarães. O Direito Administrativo na Atualidade. Estudos em homenagem ao centenário de Hely Lopes Meirelles. 1. ed., São Paulo: Malheiros, 2017.

1.207 páginas

ISBN 978-85-392-0381-9

Publicado por Marçal Justen Filho em 13.06.2017 às 16:37

JOTA – “Prorrogação contratual”: a propósito da Lei 13.448/2017. Diferenças entre “prorrogação-renovação” e “prorrogação-ampliação do prazo”

Marçal Justen Filho

Discutir sobre palavras é um dos grandes equívocos da ciência. Não que as palavras sejam irrelevantes – muito pelo contrário. Mas não é relevante concordar sobre o conceito e divergir quanto aos termos usados para referi-lo.

Mas uma outra manifestação do problema é usar uma mesma palavra para indicar conceitos distintos. Isso vem acontecendo com a expressão “prorrogação contratual”. A atual discussão sobre as concessões de serviço público comprova esse problema. É verdade que a origem do problema está na redação legislativa. Mas uma das tarefas do operador jurídico consiste em superar as limitações das palavras da lei para determinar o sentido e a extensão das normas.

No direito brasileiro, a expressão “prorrogação” consta de diversos textos legislativos, com acepções jurídicas muito distintas e subordinada a regime jurídico inconfundível.

Há pelo menos duas figuras jurídicas distintas no direito brasileiro, todas denominadas legislativamente de “prorrogação”.

Existe, primeiramente, a “prorrogação-renovação” do contrato. Consiste num ato jurídico destinado a instaurar uma nova relação jurídica, envolvendo os mesmos sujeitos e com objeto jurídico similar, depois de exaurido o prazo determinado da relação original. Essa figura destina-se a impedir que o atingimento do termo contratual final produza o encerramento do relacionamento jurídico entre as partes. O ponto fundamental reside em que a prorrogação acarreta o surgimento de um novo vínculo jurídico, inconfundível com aquele anterior. É até possível que o conteúdo da nova contratação seja influenciado pelos dados da contratação anterior. É nessa acepção que o art. 175, parágrafo único, inc. I, da CF/88 alude à prorrogação dos contratos de concessão. Também é essa a acepção do termo “prorrogação” no art. 57, inc. II, da Lei 8.666, que dispõe sobre contratos de prestação de serviços contínuos.

Mas também existe a “prorrogação-ampliação do prazo”. Trata-se de ato jurídico por meio do qual o termo final de uma relação jurídica é transferido para o futuro. Essa figura destina-se a impedir a extinção da vigência do vínculo. Nesse caso, a prorrogação amplia o prazo do vínculo que se encontra em curso, mantendo-o por período de tempo superior ao originalmente previsto. Portanto, nem se extingue a relação anterior, nem é instituída uma nova. As condições previstas para o vínculo original são mantidas, com eventuais alterações e adaptações. É nesse sentido que o art. 57, § 1º, da Lei 8.666 utiliza a expressão, tal como se passa no caso do art. 57, inc. I, do mesmo diploma.

Essa diferenciação é muito relevante, porque a disciplina jurídica para a “prorrogação-renovação” é bastante diversa da “prorrogação-ampliação do prazo”. Os pressupostos jurídicos para cada qual são diferentes.

A distinção fica muito evidente na disciplina da Lei 13.448, resultado da conversão da MP 752. O texto legislativo alude a “prorrogação” em sentidos diversos, mesmo que o próprio diploma o ignore.

No art. 4º, inc. I, há uma definição de prorrogação que revela a confusão generalizada existente. A redação é a seguinte: “Para os fins desta Lei, considera-se: I – prorrogação contratual: alteração do prazo de vigência do contrato de parceria, expressamente admitida no respectivo edital ou no instrumento contratual original, realizada a critério do órgão ou da entidade competente e de comum acordo com o contratado, em razão do término da vigência do ajuste”.

Ora, como seria possível “alterar o prazo de vigência do contrato… em razão do término de vigência do ajuste”? Se o ajuste atingiu o seu termo final, produz-se a extinção do contrato. Não é possível alterar o prazo de vigência de um contrato extinto. Ou se altera o prazo de vigência do contrato (e ele não se extingue) ou o contrato se extingue (e não é alterável o seu prazo de vigência).

Na verdade, a Lei 13.448 disciplina, em muitas passagens, a “prorrogação-renovação” de contratos. Prevê que, atingido o termo final das contratações, ocorrerá uma nova avença, em condições que podem ser distintas daquelas originalmente previstas. É nessa linha que o art. 7º da Lei estabelece que “O termo aditivo de prorrogação do contrato de parceria deverá conter o respectivo cronograma dos investimentos obrigatórios previstos e incorporar mecanismos que desestimulem eventuais inexecuções ou atrasos de obrigações, como o desconto anual de reequilíbrio e o pagamento de adicional de outorga”. Ou seja, a especificação das obrigações das partes será subordinada a inovações, sem vínculo necessário com as condições originalmente previstas.

O inc. II do art. 4º da Lei alude a uma “prorrogação antecipada” (“alteração do prazo de vigência do contrato de parceria, quando expressamente admitida a prorrogação contratual no respectivo edital ou no instrumento contratual original, realizada a critério do órgão ou da entidade competente e de comum acordo com o contratado, produzindo efeitos antes do término da vigência do ajuste”). A Lei não se deu conta de que a alternativa disciplinada tanto poderia consistir numa simples “alteração de prazo” como numa “renovação contratual” (ainda que antecipada).

O problema de toda essa confusão é que a prorrogação-ampliação de prazo se constitui num mecanismo essencial para a recomposição da equação econômico-financeira dos contratos administrativos. Especialmente nos dias atuais, a ampliação do prazo e do perfil dos investimentos a cargo do concessionário podem ser viabilizados, na maior parte das vezes, somente por meio da ampliação de prazos contratuais. Essa solução independe de autorização legislativa ou de previsão no ato convocatório ou no contrato, mas é uma decorrência da competência unilateral da Administração para alteração contratual e para a tutela à equação econômico-financeira.

A contaminação do tratamento da prorrogação-ampliação de prazo pela figura da prorrogação-renovação é uma alternativa muito ruim. Porque, num grande número de casos, não existe autorização expressa nem em lei, nem no edital, nem no contrato. O resultado prático será ou obrigar o Poder Concedente a indenizar o concessionário em dinheiro (que não existe) ou elevar as tarifas (para usuários que não têm condições de pagar). Discutir sobre palavras é um problema teórico, mas é uma maldição quanto se traduz em equívocos sobre a vida real.

Texto veiculado no JOTA, em 12.6.2017

Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/prorrogacao-contratual-a-proposito-da-lei-13-4482017-12062017

Publicado por Marçal Justen Filho em 22.03.2017 às 15:40

Entrevista sobre licitações e contratações da Administração Pública

20/03/17 – Na décima primeira entrevista exclusiva para a Comunidade de Prática de Compras Públicas da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), o professor e Marçal Justen Filho falou sobre licitações e contratações da Administração Pública. As perguntas foram elaboradas pela professora Marinês Restelatto Dotti.

Marçal Justen Filho: Mestre e Doutor em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná de 1986 a 2006, Visiting Fellow no Instituto Universitário Europeu (Itália, 1999) e Research Scholar na Yale Law School (EUA, 2010/2011). Advogado, fundador e sócio de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini – Sociedade de Advogados. É autor de diversas obras jurídicas e palestrante frequente em conferências nacionais e internacionais.

Marinês Restelatto Dotti é Advogada da União. Especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autora de artigos jurídicos sobre licitações, contratos administrativos e convênios. Coautora das seguintes obras: (a) Políticas públicas nas licitações e contratações administrativas; (b) Limitações constitucionais da atividade contratual da administração pública; (c) Convênios e outros instrumentos de Administração Consensual na gestão pública do século XXI. Restrições em ano eleitoral; (d) Da responsabilidade de agentes públicos e privados nos processos administrativos de licitação e contratação; (e) Gestão e probidade na parceria entre Estado, OS e OSCIP; (f) Microempresas, empresas de pequeno porte e sociedades cooperativas nas contratações públicas; (g) Comentários ao RDC integrado ao sistema brasileiro de licitações e contratações públicas.

1. O art. 5º da Lei nº 12.846, de 2013 (lei anticorrupção), prevê um elenco de condutas que configuram atos lesivos à administração pública, algumas relacionadas a licitações e contratos. Na sua opinião, o elenco indicado no referido dispositivo é exemplificativo ou exaustivo?
Marçal: O elenco do art. 5º da Lei 12.846 é exaustivo, mas apenas para os fins da disciplina prevista no referido diploma. Ou seja, existem outras hipóteses de condutas ilícitas, sujeitas a reprovação, não previstas no referido art. 5º. Essas outras manifestações de ilicitude se subordinam a regime jurídico distinto. Deve-se ter em vista que o regime da Lei 12.846 envolve uma responsabilização diferenciada e peculiar, caracterizada pelo sancionamento não apenas à própria pessoa jurídica em cuja órbita foi praticada a conduta reprovável, mas também a outras sociedades (controladoras, controladas e coligadas). Essa responsabilização objetivada e ampla somente incidirá nas hipóteses em que o ilícito for subsumível às hipóteses do art. 5º. Em síntese, não se trata de uma limitação do sancionamento por ilicitude, mas de limitação da incidência do regime sancionatório diferenciado previsto na Lei 12.846.

2. Quais seriam os principais mecanismos e procedimentos internos a serem adotados pela pessoa jurídica de direito privado que participa de licitações e contratações promovidas pela administração pública, para o efeito de impedir desvios, fraudes ou irregularidades nesses processos?
Marçal: É inviável formular uma resposta exaustiva para a pergunta apresentada. Em primeiro lugar, não se afigura possível que condutas adotadas exclusivamente no âmbito das empresas privadas propiciem o desaparecimento de desvios, fraudes e irregularidades nos processos licitatórios e de contratações públicas. O sucesso nessa empreitada depende da atuação conjunta do Poder Público (inclusive do Poder Judiciário) e do setor privado. Basta um exemplo para evidenciar a dimensão do problema. É muito usual o setor público criticar a pluralidade de oportunidades para interposição de recursos administrativos no âmbito do procedimento licitatório. Mas o recurso é um dos instrumentos para o particular opor-se à prática de irregularidades no âmbito de licitações e contratações administrativas. Não significa que todo recurso é procedente, mas implica a necessidade de assegurar amplamente o exercício do direito de o particular insurgir-se contra qualquer ação ou omissão lesiva a seus interesses.  Ou seja, o primeiro ponto reside em que o setor público e o setor privado devem atuar de como conjugado para combater a fraude. Em segundo lugar, a atuação isolada de cada empresa licitante é insuficiente para eliminar as fraudes. Será irrelevante a adoção de mecanismos internos de controle absolutamente eficientes em prevenção de fraudes por todos os licitantes menos um. A generalização dos mecanismos de combate à fraude não produzirá efeitos satisfatórios se não for praticada de modo absoluto. Significará muito mais facilitar a atuação dos desonestos. Ou seja, o grande risco é os oportunistas aproveitarem a honestidade dos demais competidores para obterem vantagens indevidas. Enfim, isso não elimina a necessidade de que cada empresa estabeleça, de modo institucional, a proscrição de práticas fraudulentas e viciadas. Isso envolve, antes de tudo, uma decisão empresarial formal, que seja traduzida em organização e procedimentos internos apropriados. Isso envolve um sistema de freios e contrapesos no âmbito da iniciativa privada, muito semelhante ao que é reputado como peculiar aos regimes democráticos de governo estatal. É imperioso eliminar o poder absoluto no âmbito da empresa privada. É tradicional afirmar que “o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe de modo absoluto…”. Esse provérbio deve ser aplicado não apenas no âmbito do Estado, mas também da empresa privada. Isso significa a exigência de uma sistemática de “separação de poderes” também no âmbito das empresas privadas. Nenhum acionista, ainda que majoritário, pode acumular todas as atribuições. É indispensável a dissociação das competências internas e a criação de estruturas organizacionais que permitam que o poder (privado) controle o próprio poder (privado). Isso envolve a criação de órgãos de controle ao interno da empresa, que não apenas impeçam, mas também identifiquem imediatamente as condições necessárias à prática de corrupção, o desvio de recursos e outras irregularidades semelhantes.  Portanto, a macroempresa privada é uma estrutura social apta a acumular enorme quantidade de poder, o que exige a imposição de instrumentos de controle e limitação.

3. Há alguma legislação estrangeira a que o Projeto de Lei do Senado nº 559, de 2013, que almeja revogar a Lei nº 8.666, de 1993, a Lei nº 10.520, de 2002 e os arts. 1º a 47 da Lei nº 12.462, de 2011, pode inspirar-se? Quais aspectos dessa legislação poderiam ser incorporados ao sistema brasileiro de licitações e contratações da administração pública?
Marçal: O sistema de licitações e contratações públicas vigente no Brasil, previsto nos diversos diplomas e cogitado nas futuras reformas, é basicamente ineficiente. Tem-se mostrado inadequado ao longo de décadas. A insistência nesse modelo é uma demonstração de teimosia, de reiteração dos erros que a nossa experiência comprovou de modo inequívoco. É usual afirmar que “contra fatos não há argumentos”, um ditado que é ignorado no setor das licitações e contratações públicas no Brasil. Sou radicalmente contrário a todas as soluções legislativas vigentes e a todas essas propostas apresentadas que se restringem a modificações pontuais. Dito isso, é muito problemático buscar soluções no estrangeiro porque o modelo de Estado no Brasil é inconfundível. Devemos ter em vista que o Estado brasileiro é extremamente intervencionista e assistencialista, o que acarreta uma enorme quantidade de contratações públicas – todas precedidas, em princípio, de licitação. Isso não significa impossibilidade de aproveitamento de experiências estrangeiras. O primeiro aspecto a ser reformado no direito brasileiro é definição clara e precisa da natureza instrumental da licitação: a licitação é um meio para atingir certos resultados. O segundo aspecto essencial é a definição mais precisa dos fins a serem atingidos. O terceiro é assegurar a mais ampla participação possível dos interessados. E o quarto é reduzir a assimetria de conhecimento, que conduz a Administração a contratar aquilo que não necessita ou comprar extremamente mal, mesmo quando paga pouco. Em todos os países do mundo, existem mecanismos de adaptação contínua nos processos licitatórios, visando realizar esses objetivos. Esses mecanismos se traduzem na redução do autoritarismo dos procedimentos e na utilização mais intensa possível dos mecanismos de mercado para benefício dos interesses a serem satisfeitos pela Administração Pública.

4. Considera que a Lei nº 13.303, de 2016, a qual dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, trouxe significativos avanços no âmbito das licitações e contratações promovidas por essas entidades?
Marçal: Sim, em termos. A ilusão de que uma lei resolve os problemas práticos é, geralmente, apenas isso: uma ilusão. A dimensão positiva ou negativa da Lei 13.303 não se resolve no plano abstrato do discurso. Deve ser examinada em vista da realidade prática. Não podemos ignorar o exemplo que nos foi proporcionado pela experiência da Petrobras – sobre a qual me manifesto nos limites dos fatos divulgados pela imprensa. A Petrobras adotou um Regulamento próprio, que já incorporava muitas das “conquistas da Lei 13.303”. Isso não impediu os desvios que têm sido noticiados continuamente pela imprensa. Não se diga que os desvios foram propiciados pela sistemática do Regulamento interno. Outras entidades, que seguiam a Lei 8.666 e a sistemática tradicional, também estão envolvidas em corrupção e irregularidades. Ou seja, é impossível eliminar a corrupção mediante apenas uma nova lei de licitações. Com alguma ousadia, eu afirmaria que qualquer modelo licitatório poderia funcionar satisfatoriamente se o contexto institucional público e privado assegurasse a ausência de corrupção e impedisse a pura e simples incompetência. Voltando à Lei 13.303, ela propicia uma margem de autonomia muito significativa para as empresas estatais exploradoras de atividade econômica. Mas isso exigirá uma enorme dose de energia, dedicação e comprometimento das empresas estatais. Caberá a cada empresa desenvolver as soluções mais apropriadas para as suas necessidades e características.  O grande desafio é a tentação a promover a ultratividade da legislação anterior. Isso se verifica quando os aplicadores da lei nova adotam interpretação que implica a preservação da lei antiga, já revogada. No caso concreto, o problema é o risco de que a Lei 13.303 seja interpretada e aplicada à luz dos entendimentos predominantes antes de sua edição.

5. De acordo com a Lei nº 13.303, de 2016, é dispensável a realização de licitação por empresas estatais para obras e serviços de engenharia de valor até R$ 100.000,00 (cem mil reais) e para outros serviços e compras de valor até R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). Ditos valores podem ser alterados, para refletir a variação de custos, por deliberação do Conselho de Administração da empresa pública ou sociedade de economia mista, admitindo-se valores diferenciados para cada sociedade. Quais critérios, inclusive no tocante à periodicidade, podem ser adotados pelo Conselho de Administração para o efeito de alterarem-se esses valores?
Marçal: A pergunta reflete o enfoque típico vigente entre nós no atual modelo licitatório. Trata-se de uma manifestação daquela tendência a interpretar a lei nova à luz da lei antiga. Veja-se: não se trata de criticar a pergunta, nem de afirmar que ela é equivocada. Muito pelo contrário, essa questão poderá apresentar enorme relevância prática, especialmente em vista de potencial preocupação dos órgãos de controle. O ponto fundamental reside em que a finalidade da Lei era remeter a solução desse tipo de questão a cada empresa estatal, à qual incumbiria avaliar as suas peculiaridades e determinar a solução mais adequada. Esse tipo de solução é um rompimento com a nossa tradição. O modelo vigente exige soluções predeterminadas, padronizadas, que sejam praticadas por toda e qualquer entidade, mesmo que absolutamente incompatíveis com as suas circunstâncias. Portanto, a pergunta reflete uma dose de espanto do intérprete, que fica até chocado com a ausência de uma “norma geral uniforme e imutável, a ser aplicada de modo geral por toda a Administração Pública”. Voltando à pergunta. No direito brasileiro, é vedada a vinculação automática de valores monetários nominais à variação inflacionária. Portanto, o fenômeno da inflação não autoriza, como regra, o reajuste automático de valores monetários nominais. Essa questão foi discutida pelo próprio STF, no RE 565.089, a propósito do art. 37, inc. X, da CF/88 (que determina que o valor da remuneração dos servidores públicos será reajustado periodicamente para fazer face à inflação). Portanto, os valores monetários nominais não são reajustados de modo automático. Por outro lado, a variação de valores monetários subordina-se às regras gerais vigentes em nosso sistema desde a implantação do Plano Real. Se não existe autorização legislativa para alteração automática dos valores em virtude da inflação, existe uma vedação a que os valores sejam alterados em período inferior a doze meses. Essa é a regra geral. Ocorre que o valor para dispensa de licitação não se confunde com um montante financeiro a ser liquidado em favor de um sujeito. Consiste apenas numa ponderação quanto ao valor de contratações que justifica a realização de licitação. Ora, o valor da contratação é uma decorrência (também) dos custos necessários à execução da prestação necessária à satisfação do interesse da parte. A Lei 13.303 reportou-se à variação dos custos, sem estabelecer regras rígidas e rigorosas, a serem observadas de modo automático. Essa foi uma opção legislativa. Se a Lei 13.303 pretendesse adotar regras rígidas, é evidente que outra teria sido a solução consagrada. Em suma, a Lei autorizou soluções heterogêneas e variáveis, cuja configuração depende das circunstâncias do mercado e das características das contratações de cada setor de atividades exploradas pela empresa estatal. Foi fixado um valor limite máximo no momento inicial, a ser observado pelas empresas estatais. Esse valor nominal pode ser elevado em vista da constatação de que, com o decurso do tempo, o valor real passou a ser mais elevado – seja em virtude da inflação geral, seja em vista de circunstâncias diferencias específicas. Existe uma margem de discricionariedade para cada empresa alterar os limites de contratação direta. Mas isso não significa existência de discricionariedade em sentido próprio. Não é admitida uma valoração sobre conveniência e oportunidade para fixação de valores de dispensa dissociados da disciplina prevista na Lei 13.303. É necessário evidenciar que os custos sofreram variações, de modo que a preservação do valor real previsto na Lei 13.303 exige a elevação do valor nominal. Indo avante, não é inadequado reportar-se à distinção entre reajuste e revisão, tradicional no âmbito dos contratos administrativos. Tomando por base essa distinção, pode-se afirmar que as variações decorrentes de inflação generalizada somente autorizam o reajuste do limite do valor de dispensa a cada doze meses. Mas não é vedada a revisão do valor, nos casos de variações imprevisíveis e específicas, de cunho extraordinário.

6. Qual a sua opinião sobre a adoção preferencial da modalidade pregão nas licitações promovidas pelas empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias, unicamente nas aquisições de bens e serviços comuns? Em vista da economicidade e celeridade processual, já mensuradas, decorrentes da utilização do pregão, entende defeituoso o dispositivo da Lei nº 13.303, de 2016, cujo texto não estendeu a utilização da modalidade também para obras de engenharia consideradas comuns?
Marçal: É verdade que a aplicação do pregão não se vincula à qualificação de um objeto contratual como serviço ou obra de engenharia. O ponto central é a existência de um objeto comum. Portanto, não vejo impedimento à utilização do pregão, mesmo para obras  e (especialmente) serviços de engenharia, quando o objeto for comum. Mas há outro aspecto a ser considerado. A pergunta reflete um dilema enfrentado pela Administração Pública diuturnamente, sem que exista uma consciência precisa do problema. Passou a ocorrer uma dissociação entre os setores administrativos encarregados de promover a licitação e aqueles investidos da gestão dos contratos. Portanto, o fim buscado pelo “departamento de licitações” é realizar a licitação mais rápida e com menos incidentes, com uma contratação imediata. Quando isso acontece, o “departamento de licitações” reputa ter cumprido as suas atribuições. Ocorre que concluir uma licitação rapidamente não significa necessariamente que foi obtido o melhor contrato possível. Dito de outro modo, é inquestionável que o pregão propicia licitações mais rápidas e redução de desembolso para a Administração. Mas daí não se segue que exista comprovação de que todo e qualquer contrato resultante de pregão é satisfatório. A questão se relaciona com o que eu denomino de “mutação dinâmica da proposta”. Num pregão, o licitante vai alterando a consistência de sua proposta à medida que reduz o preço. A redução da oferta é refletida na diminuição do custo do particular. Então, o objeto ofertado pelo licitante ao final do pregão não é o mesmo que ele cogitara ao apresentar a proposta. Portanto, a Administração convive com prestações destituídas da qualidade necessária porque o preço obtido é inferior ao necessário a assegurar uma prestação adequada. Esse é o motivo da restrição do uso do pregão para objetos comuns. A sistemática do pregão é adequada para contratação em que o padrão de qualidade do objeto licitado é padronizado, insuscetível de variação, em virtude das circunstâncias do próprio mercado. Em tais hipóteses, não se verificam os riscos da seleção adversa. Essa minha ponderação não significa rejeitar a modalidade do pregão. Minha crítica é dirigida à “compulsão do pregão”, digamos assim. Trata-se da suposição de que o pregão sempre e em todos os casos seria uma solução adequada. Pode ser mais fácil e mais rápido fazer pregão, mas isso não significa que o pregão deveria ser adotado sempre. Os economistas, há muito tempo, identificaram um fenômeno chamado de “seleção adversa”, relacionado à  chamada “assimetria de conhecimento”. Basicamente, significa que uma contratação realizada com base no menor preço absoluto, versando sobre um objeto de qualidade desconhecida, resulta como regra em uma operação não vantajosa. O comprador paga valor superior àquele necessário à obtenção do produto adequado. O tema é muito complexo e toda essa avaliação foi desenvolvida para justificar o entendimento de que o pregão não é uma solução mágica para a Administração Pública. Deve ser utilizado com uma cautela muito maior do que tem ocorrido na prática. No caso específico da indagação, a Lei 13.303 rejeitou soluções formalistas, padronizadas e obrigatórias, que possam resultar em desastres – desastres esses com os quais a Administração vem convivendo e que precisam ser evitados.

7. Recentemente o Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União (CGU) divulgou avaliação dos resultados alcançados pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes – DNIT, decorrentes da adoção do regime diferenciado de contratações públicas (Lei nº 12.462, de 2011), recomendando a essa entidade sua utilização de forma preferencial. Na sua opinião, o regime diferenciado de contratações públicas tem potencial para ser o regime jurídico de licitações e contratações da administração pública?
Marçal: Uma resposta muito simplista seria afirmar que, no atual cenário, as soluções da Lei 8.666 e da Lei 12.462 são tendencialmente equivalentes. Alguns defeitos intrínsecos e essenciais do regime anterior são mantidos no âmbito da Lei 12.462. Basta considerar que as regras sobre habilitação da Lei 8.666 continuam aplicáveis. É claro que a Lei do RDC confere uma margem muito mais adequada de autonomia à Administração para configurar um procedimento licitatório compatível com o objeto licitado. Mas vou insistir com um aspecto essencial do problema, que continua a ser menosprezado: um dos aspectos essenciais das dificuldades da Administração Pública não se relaciona com o regime jurídico da licitação, mas da contratação administrativa. A Lei 12.462 manteve o mesmo regime de contratação administrativa herdado do Dec.-lei 2.300. São concepções anteriores à Constituição de 1988 e que foram concebidas para um Brasil muito diferente do atual. Nem existiam empresas privadas com a dimensão das que existem hoje. Aplica-se aquela velha comparação: colocar um motor de Ferrari em um Fiat Uno não vai produzir bons resultados. Esse é o enfoque com o qual temos convivido: tentativas contínuas de aperfeiçoar o procedimento licitatório, sem a modernização compatível do regime contratual.

8. O art. 6º da Lei nº 12.462, de 2011, o art. 34 da Lei nº 13.303, de 2016, e o art. 21 do Projeto de Lei do Senado nº 559, de 2013, preveem o sigilo do orçamento estimado do contrato, o qual será disponibilizado estritamente aos órgãos de controle externo e interno. Qual a sua opinião a respeito do sigilo frente ao disposto no art. 3º e no art. 7º, inciso VI, da Lei nº 12.527, de 2011 (lei de acesso à informação)?
Marçal:  Sempre fui contra essa orientação de sigilo do orçamento estimado. Não consigo me convencer de que a divulgação prévia do valor do orçamento é um incentivo à elevação dos preços. Essa é uma tese que demanda prova concreta, a qual somente poderia ser produzida mediante experimentação concreta – que não existe. A minha proposta sempre foi a de ampliar ao máximo a competição. Quanto maior o número de competidores, tanto menor é o preço obtido: essa é uma lei do mercado, que não me parece ser questionável. Havendo competição satisfatória, é irrelevante o conhecimento do valor do orçamento. Mas a minha maior discordância com o sigilo é o risco de corrupção. Quem conhecer o valor do orçamento adquire uma vantagem indevida na competição. Há um segundo problema, que envolve hipóteses em que o orçamento apresenta defeitos, que o tornam inexequível. A ausência de divulgação torna impossível a revelação dos defeitos. Enfim, existe uma outra questão, que é surreal: se a melhor oferta for superior ao valor do orçamento, inicia-se uma negociação para redução do seu valor sem divulgação do referido valor. De todo modo, acho que a solução legislativa do sigilo do orçamento, embora incorreta (perdoem-me a sinceridade), é válida. A Lei de Acesso à Informação é uma lei federal, de hierarquia normativa idêntica à das leis de licitação. A exigência de sigilo do orçamento consta de leis federais posteriores à própria Lei de Acesso à Informação. Portanto, é necessário aplicar a exigência do sigilo do orçamento.

9. Como os órgãos de controle, interno e externo, podem auxiliar a administração pública a efetivarem contratações mais eficazes?
Marçal: Não me parece que a efetivação de contratações mais eficazes dependa especificamente de alguma atuação adicional dos órgãos de controle. Existe, no entanto, um distanciamento significativo entre a chamada “administração ativa” e a atividade de controle. Isso se deve a vários fatores, entre os quais a própria incerteza quanto à natureza específica e os limites das competências dos órgãos de controle, interno e externo. Isso se traduz em regime jurídico indeterminado, que não está consagrado de modo preciso e exato no direito positivo. Dou um exemplo concreto: há tendência no âmbito do TCU à consagração da tese da ausência de efeito de coisa julgada material às suas decisões. Não existe regra legal específica sobre o tema e isso proporciona efeitos dramáticos. Por outro lado, prevalece muitas vezes o entendimento de que a função do órgão de controle é “assegurar a supremacia do interesse público”. Embora ninguém consiga determinar o que isso significa, há uma tendência a resolver todas as controvérsias a favor do Poder Público, tal como se a violação da ordem jurídica pudesse ser compatível com o interesse público nas hipóteses em que o lesado é o particular. Ora, para haver contratação eficaz é indispensável ampliar a competição e exigir que a disciplina contratual seja estritamente observada – não apenas nos casos em que exista uma garantia em favor da Administração. Tem-se falado que a situação atual conduzirá à invasão do mercado de contratações públicas por empresas estrangeiras. Ora, nenhuma empresa estrangeira séria se disporá a participar de um mercado em que as condições contratuais não sejam estritamente observadas. Mas existem sugestões práticas e concretas a serem feitas. A primeira e mais urgente necessidade é a padronização dos entendimentos. Não é possível que cada contratação seja subordinada a padrões hermenêuticos distintos, provenientes de órgãos diversos. Se a AGU adota um entendimento e o TCU, outro, o gestor se encontra numa situação paradoxal, em que coexistem dois universos jurídicos distintos, cada qual com as suas regras próprias. A segunda exigência é a estabilidade dos entendimentos. Isso não significa um engessamento das orientações, mas a vedação à aplicação retroativa da nova interpretação. O rompimento da segurança jurídica acarreta efeitos insuportáveis. A terceira exigência é a compreensão do contexto em que se encontra o administrador, inclusive no tocante às necessidades concretas e as limitações existentes. O órgão de controle precisa vivenciar a situação experimentada pelo gestor, que é muitas vezes dramática. A quarta exigência é a alocação para os órgãos de gestão de recursos materiais e de pessoal com qualidade, treinamento e condições equivalentes àqueles proporcionados para os órgãos de controle. A atividade de controle é essencial para assegurar os objetivos constitucionais. Mas a atividade administrativa essencial não é o controle. A satisfação das necessidades essenciais e a promoção dos valores constitucionais mais supremos depende da atividade administrativa ativa. Portanto, os investimentos mais relevantes do Estado devem ser realizados no âmbito da atividade administrativa finalista.

10. Considera importante que órgãos e entidades públicas promovam a segregação de funções em seus processos de licitação e contratação?
Marçal: Essa é uma questão complicada, porque acarreta enorme risco de desorganização prática. Acho extremamente nocivo atribuir a autoridades diversas as atribuições de licitar, contratar e gerenciar o contrato. O resultado prático é atroz. Há um pregoeiro encarregado de conduzir milhares de licitações, com objetos os mais variados possíveis. Cabe-lhe resolver os incidentes sobre os requisitos de habilitação e sobre as propostas. Mas o pregoeiro conhece apenas as características do sistema eletrônico. A dissociação de atribuições produz o risco de transformação da licitação em um fim em si mesmo. Então, o objetivo buscado pela autoridade licitatória será concluir o certame, mesmo que o objeto contratado seja imprestável. Dito de outro modo, torna-se muito complexa uma avaliação uniforme da “eficiência” da atividade administrativa. O resultado prático tende a ser a contratação de objetos inadequados, inservíveis ou defeituosos. Acho indispensável que a licitação seja conduzida por pessoal que detenha conhecimento sobre o objeto a ser adquirido. Em termos figurados, o sujeito que vai tomar o cafezinho tem o poder-dever de acompanhar a licitação para compra do pó de café. Ou seja, a especialização de atribuições não pode conduzir à fragmentação da atividade administrativa. A eficiência nas contratações depende de que o processo na sua integralidade seja vinculado à satisfação da efetiva necessidade administrativa. Acho recomendável a especialização, mas não a segregação das atividades. Somente desse modo será ampliada a eficiência na utilização dos recursos públicos.

Entrevista publicada originalmente e disponível em:

https://comunidades.enap.gov.br/ mod/forum/discuss.php?d=77

Publicado por Marçal Justen Filho em 7.03.2017 às 14:00

Marçal Justen Filho

O Direito não é algo abstrato. Não se confunde com o texto escrito da Lei. Não se conhece
o Direito sem conhecer profundamente a vida real.
O Direito integra a vida individual e social e reflete os valores fundamentais da
Civilização. Para compreender o Direito, é necessário conhecer o passado. Mas a função
do Direito é mudar o futuro, promover a segurança e a justiça e realizar concretamente a
dignidade de todo ser humano. Por isso, a vida do operador do Direito é um compromisso
com a sociedade em que vive, com o estudo e com a atuação prática.

Arquivado em Blog

Publicado por Marçal Justen Filho em 28.11.2016 às 17:57

A questão da (in)eficiência – XVII Congresso Paranaense de Direito Administrativo – IPDA

Para conferir a palestra de Marçal Justen Filho clique aqui: A questão da (in)eficiência



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